24 . A TRÍPLICE ILUMINAÇÃO DO HOMEM.

24 . A TRÍPLICE ILUMINAÇÃO DO HOMEM.


Então o eterno Deus lhe disse:
- Para melhor compreenderes o que vou dize, começo por falar de algo que é pressuposto às tuas perguntas, ou seja, quais são as três iluminações que procedem de mim, luz verdadeira. A primeira é dada de modo geral, para as pessoas que vivem na "caridade comum" (v. 14.11). Mas já falei dela, bem como das duas outras. Vou repetir assuntos abordados, para que consigas entender bem as respostas ao que perguntaste. As duas iluminações seguintes encontram-se nas pessoas que tendem à perfeição. Falarei das três, descendo aos particulares daquilo que expliquei no geral.

24.1 - Iluminação da "caridade comum"

Como afirmei antes (14.10), ninguém consegue seguir o caminho da verdade sem a luz da razão - recebida de mim com a inteligência - e sem aluz da fé, infundida na hora do santo batismo, supondo que não destruais esta última com vossos pecados. No batismo, a luz da fé vos é dada na força do sangue de meu Filho. Associada à luz da razão, ela vos alcança a vida e ajuda na caminhada para a verdade. Sem a fé iríeis nas trevas. Desta iluminação da fé derivam as duas outras, e até uma terceira, que vos são necessárias.
A primeira iluminação revela ao homem a transitoriedade das realidades terrenas, que passam como o vento. Tal atitude supõe, todavia, que tenhais consciência da própria fraqueza, tão inclinada a rebelar-se, já que existe nos vossos membros uma lei perversa (Rm 7,23), que vos leva a revoltar-se contra mim, vosso criador. Tal "lei" não obriga ninguém a pecar contra sua vontade, todavia combate contra o espírito. Permiti semelhante lei, não para serdes vencidos, mas a fim de provar vossas virtudes. É nas situações adversas que as virtudes são experimentadas. A sensualidade opõe-se ao espírito; é através dela que o homem comprova seu amor por mim, o criador. De que modo? Opondo-se às suas tendências, derrotando-as. Quis eu ainda, essa perversa lei para que o homem fosse humilde. Criei-o à minha imagem e semelhança, dei-lhe grande dignidade e beleza. Unindo a alma a um corpo, dei-lhe aquela lei como companheira. Era minha intensão que a alma não se orgulhasse diante da própria beleza. Para quem tem fé, portanto, o corpo é instrumento de humildade. O corpo é frágil, nada possui que seja razão de orgulho, pelo contrário, deve ser motivo de verdadeira e perfeita humildade. De si mesma a sensualidade não conduz ninguém ao pecado, mas apenas induz ao reconhecimento do próprio nada; revela a fragilidade do que é terreno.
 É preciso que a inteligência humana, sob a luz da fé, reconheça tal coisa; trata-se justamente daquela iluminação "geral" de que falei, indispensável para todos os que desejam participar da vida da graça, aproveitando os efeitos da morte do Cordeiro imaculado. Ela é necessária para todos, qualquer que seja o estado de vida; é a iluminação da "caridade comum", universal. Todos (os cristãos) devem possuí-la, sob pena de serem condenados; quem não a tem, não está na graça divina; desconhece o pecado, suas causas; por isso não o odeia, não o evita. Ora, a pessoa que ignora o bem e a virtude não pode reconhecer-me, não pode ser virtuosa, não adquire a graça, único meio que a mim conduz. Percebes quanto é importante esta iluminação?
Vossos pecados consistem no amor por realidades que abomino; consistem em abominar coisas que eu amo. Pois bem! Amo a virtude, detesto o vício. Quem ama o vício, ofende-me; é um cego a caminhar, sem saber o que é o pecado, o que é o egoísmo, quais são as consequências do pecado. O pecador ignora o que seja a virtude, ignora que sou a fonte da vida, desconhece a dignidade da graça na prática das virtudes. Bem vês, a ignorância é a raiz de seus males. Donde a necessidade desta iluminação.

24.2 - Iluminação dos imperfeitos   

Após ter recebido a precedente iluminação geral, o cristão não deve dar-se por satisfeito. Enquanto viveis neste mundo, podeis e deveis progredir. Se alguém estaciona, por isso mesmo retrocede. É necessário crescer naquela iluminação recebida com a graça, ou superar o que é imperfeito para atingir a perfeição. De fato, existe uma segunda iluminação para quem aspira à perfeição. Ela é dupla para aqueles que se elevaram do comum comportamento no mundo.
O primeiro é dos que se põem a castigar o corpo com grandes penitências, com a intenção de sujeitar a sensibilidade ao controle da razão. Estes dedicam mais esforço em dominar o corpo, que em destruir a vontade própria como já disse antes. São homens que vivem de penitências. Conseguirão ser bons, até perfeitos, se agirem com discernimento, se possuírem um humilde conhecimento de si mesmos e da minha divindade, se julgarem a respeito de si mesmos como eu o faço e não à maneira dos homens. Se a estes penitentes faltar humildade e conformação à minha vontade, regredirão na virtude. Estes últimos costumam condenar quem caminha por outras estradas; empenham-se unicamente na mortificação do corpo, não da vontade; gostam de escolher para si, de acordo com as próprias preferências, ocasiões, situações e confortos espirituais, bem como os sofrimentos e lutas contra o demônio. De tudo isso já falei quando me ocupei do estado próprio dos imperfeitos (18.1.2). Enganados por aquilo que denominei "egoísmo espiritual", tais pessoas se iludem, dizendo: "Gostaria de sentir estas e estas consolações, ao invés de sofrer as presentes impugnações e tentações do demônio. Não por mim mesmo, mas para poder agradar mais a Deus, para possuí-lo mais intensamente através da graça. Penso que nas consolações eu o experimentaria e o possuiria melhor!".
Com semelhante atitude, o homem termina muitas vezes na angústia e no desânimo, desespera-se, prejudica o próprio aperfeiçoamento, sem perceber que na base de tudo está o orgulho. Se em lugar do orgulho houvesse humildade, compreenderia que eu, bondade primeira bondosíssima, dou tudo - estado da alma, acontecimentos, acontecimentos, situações, consolações, sofrimentos - em conformidade com as exigências da vossa santificação, visando vosso aperfeiçoamento; entenderia que tudo faço por amor. É no amor que a pessoa há de aceitar todos os eventos, como o fazem aqueles que estão no terceiro e quarto estados dos quais passo a falar.

  24.3 - Iluminação dos perfeitos

O segundo modo de caminhar no aperfeiçoamento encontra-se no terceiro estado; os que chegam a esta iluminação comportam-se bem em tudo que fazem, respeitando devidamente tudo quanto lhes sucede. Disto já falei brevemente ao tratar do terceiro e quarto estados (18.4 e 18.5). Julgam-se merecedores das contrariedades provocadas pelo mundo, indignos de qualquer consolação, de qualquer conforto depois do sofrimento. Nesta iluminação eles compreendem que minha vontade eterna apenas deseja seu bem; tudo quero ou permito para que sejais santos. Com esse conhecimento, o homem se conforma ao meu querer e se preocupa unicamente em achar os meios necessários para santificar-se. Deseja louvar-me e glorificar-me. Fixa então o olhar da fé em Jesus crucificado e nele encontra a norma de todos, perfeitos e imperfeitos. A descoberta dessa mensagem de perfeição do Verbo encarnado leva-os a se apaixonarem por ela. Eis em que consiste tal mensagem de perfeição: que Cristo, repleto de desejo santo, vivia sedento da minha glória e salvação dos homens; que em força desse desejo santo, ele correu ao encontro da terrível morte na cruz, cumprindo a obediência que eu lhe impusera; que não procurou evitar as dificuldades e injúrias, nem desanimou diante da ingratidão e má vontade humana em reconhecer o grande dom aos homens oferecido; que não fugiu das perseguições dos judeus, das caçoadas, críticas e vociferações do povo, mas pelo contrário, tudo venceu, como autêntico general, como bom soldado colocado por mim no campo da luta a fim de libertar-vos das mãos do diabo. Sim, Cristo vos libertou da pior escravidão! Ao versar seu sangue num imenso ato de caridade, ensinou-vos a estrada que conduz até mim e disse: "Eu construí o caminho, com minha paixão abri a porta; não sejais negligentes em caminhar, permanecendo sentados no egoísmo, de má vontade, com a presunção de servir-me a vosso modo. Eu, Verbo eterno, fiz a estrada em mim mesmo e a percorri no sangue".
Levantai-vos, pois, e imitai o Verbo encarnado! Ninguém pode vir a mim, senão por meio dele (Jo 14,6). Ele é o caminho e a porta, pelos quais deveis passar antes de atingir-me, oceano de paz.
Quem recebe esta iluminação, alegremente procura a mesa do desejo santo, sem pensar em si mesmo quanto a consolações espirituais e materiais. Tendo imergido sua vontade nessa luz, aceita todos os cansaços, venham de onde vierem; suporta as tentações do demônio e as oposições dos homens; junto à cruz, arde no desejo de minha glória e da salvação humana. Nenhuma recompensa procura, seja da minha parte como da parte dos homens. O perfeito despojou-se do amor interesseiro (18.1.2), pelo qual me amava pensando em si mesmo. Agora, uma luz sem defeito o envolve. Ama-me desinteressadamente, sem aspirar por consolações; ama o próximo sem esperar compensações pessoais. Ama simplesmente por amar! Tais pessoas já não mais se pertencem. Despojaram-se do homem velho - a sensibilidade - e revestiram-se do novo, Jesus Cristo, a quem seguem virilmente. Tomados pelo desejo santo, procuram dominar a própria vontade, mortificar o corpo. Fazem penitências, mas não como se fossem a sua meta principal; fazem-nas apenas par eliminar a vontade própria, na maneira que expliquei ao falar daquela minha expressão: "Gosto de poucas palavras e de muitas ações". Tal deve ser também vosso modo de agir. O maior esforço oriente-se para a destruição do egoísmo; imite-se o Cristo crucificado, com o desejo de glorificar-me e de salvar a humanidade. É o modo de agir daqueles que se encontram nesta iluminação. Vivem em paz, tranquilos. Uma vez eliminado o fundamento de todo o mal, que é a vontade própria, já não se perturbam. Eles sabem que as perseguições do mundo e do demônio, são permitidas por mim. Mesmo num mar de contradições, saem ilesos. São ramos enxertados no tronco do amor.
Alegram-se em todos os acontecimentos. Os perfeitos e perfeitíssimos nada julgam sobre os meus servidores; nem a respeito de ninguém. Tudo os leva a exclamar: "Agradeço-te, Pai eterno, porque em tua casa existem muitas moradas". Notando diversos modos de agir, alegram-se mais do que se vissem todos caminhar por uma mesma estrada; compreendem que dessa maneira meu ser é mais bem revelado. Sempre otimistas, de todas as coisas extraem o perfume da rosa, e não apenas aquilo que é bom. No que se refere às ações que parecem pecado, preferem não omitir juízos. Unicamente sentem compaixão. Oram pelos pecadores e com humildade refletem: "Hoje toca a ti, amanhã a mim, se a graça divina não me proteger".
Ó filha querida, apaixona-te por este excelente estado de perfeição. Vê como esses progridem sob tão grande iluminação. Como são grandes! Têm o espírito santificado, estão sedentos pelo desejo santo, preocupam-se com a salvação dos outros, porque me amam. Revestiram-se de meu Filho, vivem sua mensagem com inflamado amor. Não perdem tempo a julgar falsamente meus servidores, nem a condenar os que seguem o mundo; não se preocupam com as maledicências contra si e contra os outros: se forem contra si mesmos, suportam-nas alegremente por meu amor; se forem contra o próximo, sentem compaixão e não ficam a murmurar contra o ofensor ou o ofendido; sua caridade para com os outros é reta, sem distorções. Assim sendo, filha caríssima, não se escandalizam, nem pelas pessoas amadas nem por ninguém. Tendo morrido sua vontade própria, nunca julgam a vontade alheia; apenas consideram os desejos da minha clemência 89
(89 - Nos escritos de Catarina a "clemência do Pai é o Espírito Santo).
Os perfeitos e perfeitíssimos vivem aqueles ensinamentos que te foram dados no princípio de tua vida, quando fervorosamente suplicavas atingir a pureza total. Refletias, então, sobre o que fazer para consegui-la e te adormentaste. Quando voltaste aos sentidos, a voz do meu Filho ressoou nos teus ouvidos, dizendo:
"Desejas chegar à pureza completa? Desejas livrar-te das preocupações, de modo que teu espírito em nada se escandalize? Procura estar sempre unida a mim no amor, pois sou eu a pureza suma e eterna; sou o fogo que purifica o homem. Quanto mais alguém se avizinhar de mim, mais puro será; quanto mais distante, mais impuro. Quem se une diretamente a mim participará da minha pureza. Há uma segunda coisa que deves fazer para atingir tal união e pureza: ao veres ou ouvires de quem quer que seja, afirmações referentes a mim ou aos homens, não pronuncies julgamentos. Diante de um pecado evidente, procura extrair uma rosa do espinheiro. Em outras palavras: oferece tudo a mim com santa compaixão! Relativamente às ofensas cometidas contra ti mesma, lembra-te de mim, pois sou eu que permito tais coisas para experimentar tua virtude. Para experimentar em ti e nos demais servidores. Recorda-te de que o ofensor foi mero instrumento meu, e que ele age muitas vezes com reta intenção. Ninguém tem o direito de julgar o segredo do coração humano. Se uma ação não te parecer pecado mortal claro, evidente, não julgues interiormente além de quanto faço eu, que estou presente naquelas pessoas; se notares um pecado certo, não condenes; procura apenas compadecer-te. Comportando-te deste modo, chegarás à pureza perfeita. Teu espírito não se escandalizará, nem por minha causa nem por causa dos homens. Quando julgais iníqua a vontade de alguém, como contrária a vós, sem perceber no acontecido um desígnio meu, nasce em vós uma certa raiva contra aquela pessoa; tal raiva vos afasta de mim e prejudica vosso aperfeiçoamento. Em certos casos, chega a eliminar a graça, conforme a maior ou menor gravidade do rancor concebido contra o irmão no momento de condená-lo. Tal é a minha vontade, para vosso bem! Tudo quanto quero ou permito tem uma finalidade: que atinjais a meta para a qual vos criei! Quem ama o próximo, sempre me ama; quem me ama, acha-se unido a mim. Portanto, se desejas a pureza que suplicas, deves realizar três coisas principais: unir-te a mim no amor com a lembrança dos favores recebidos; entender o inestimável amor que vos dedico; não julgar má a vontade alheia, procurando ver nela a minha vontade. Eu sou o juiz; vós não! Assim agindo, muito aproveitarás".
Se bem recordas, foram esses os ensinamentos do meu Filho. Afirmo-te, querida filha, o seguinte: as pessoas que aprenderam a viver tal mensagem, possuem desde este mundo a garantia do céu. Conservando esta mensagem no espírito, escaparás das tentações do demônio e da dificuldade sobre a qual me interrogaste, pois estarás preparada para isso. Mas para ficar mais claro, descerei a maiores detalhes, respondendo aquele teu pedido; vou mostrar-te que vossos julgamentos não devem ser de condenação, mas de compaixão.
Eu disse acima que os perfeitos e perfeitíssimos já possuem a certeza do céu; mas não o possuem ainda. Esperam recebê-lo como recompensa de mim, que sou a verdadeira vida: vida sem morte, saciedade sem fastio, fome sem carência; hão de receber o que desejam, porque o alimento sou eu. Sim, nesta vida já têm a garantia de ir para o céu e experimentam-na. Aqui a alma começa a ter sede da minha glória e da salvação dos homens; sacia tal sede operando no amor pelo próximo. É uma sede insaciável, um desejo que cresce cada vez mais. Todo penhor constitui um início de segurança dado a um homem, em força do qual ele espera receber o pagamento. Em si o penhor não é algo perfeito e supõe a fé, que causa a certeza de receber a paga. O mesmo acontece com a pessoa apaixonada pela mensagem de meu Filho; desde esta vida recebeu a certeza do amor por mim e pelo próximo. Em si mesma, não é uma garantia total, mas prenuncia a perfeição da vida imortal. Tal penhor não é, ainda, a perfeição. Quem o experimenta não saboreia o todo e sente dores em si e por causa dos outros. Em si, por ofender-me devido à lei perversa que faz o corpo combater contra o espírito; nos outros, por causa dos pecados alheios. No entanto, tal penhora é algo de perfeito na realidade da graça, embora não atinja - como disse - o grau dos bem-aventurados que já chegaram até mim. Vida que não mais termina. As aspirações dos santos não contêm sofrimentos; as vossas, sim!
Como disse antes (18.5.3), os perfeitíssimos são sofredores e felizes, à semelhança do meu Filho quando se achava pregado na cruz. Então o corpo de Jesus achava-se doloroso e atormentado, mas sua alma era feliz na união com a divindade. Também os perfeitos e perfeitíssimos, revestidos da minha vontade, são felizes na união de desejos comigo; de outro lado sofrem, porque sentem compaixão pelos outros e afligem a própria sensibilidade, privando-se dos prazeres e gozos da mesma.

24.4 - Deus solicita atenção a Catarina

Filha querida, presta atenção agora, para que fiques esclarecida a respeito do que me perguntaste. Falei-te (24.2) da iluminação comum, necessária a todos, qualquer que seja a vossa condição. Trata-se da iluminação das pessoas que vivem na "caridade comum". Depois expliquei sobre a iluminação da caridade em aperfeiçoamento, que dividi em duas: a daqueles que deixam a vida no pecado mortal e procuram mortificar o corpo e a iluminação de quem eliminou inteiramente o egoísmo. Estes últimos são homens perfeitos, que se alimentam na mesa do desejo santo. Agora, passo a responder às tuas perguntas. Falo diretamente a ti, e por intermédio, aos demais.

24.5 - Três atitudes fundamentais

Desejo de ti três atitudes, a fim de não impedires o aperfeiçoamento a que te chamo e para que o demônio, sob a aparência de virtude, não instile em teu coração a semente da presunção, que poderia levar-te àqueles falsos julgamentos, que te desaconselhei. Pensando estar na verdade, errarias. Às vezes, o demônio até faz conhecer exatamente a realidade, mas para conduzir depois ao erro. A intenção do maligno é transformar-te em juiz dos pensamentos e intenções dos outros. Mas o julgamento, como disse, só a mim pertence.

24.5.1 - Não corrigir o próximo

A primeira coisa que te peço, é que retenhas tua opinião e não julgues os outros imprudentemente. Eis como deves agir: Se eu não te manifestar expressamente, não digo uma ou duas vezes, mas diversas vezes, o defeito de uma pessoa, jamais deves fazer referências sobre tal coisa diretamente à pessoa, que julgas possuí-lo. Quanto aos que te visitam, corrigirás os defeitos genericamente, mediante conselhos sobre as virtudes, e isto com amor e bondade. Em caso de necessidade, usarás de firmeza, mas com mansidão. No caso de que eu te revele por diversas vezes os defeitos alheios, mas não tiveres certeza de que é uma revelação expressa, não fales diretamente sobre o caso. A fim de evitar a ilusão do demônio, segue o caminho mais seguro. O diabo pode enganar-te sob a aparência de caridade, fazendo-te condenar os outros em assuntos não verdadeiros, com escândalo mesmo. Nesses casos, esteja na tua boca o silêncio.
Ao perceberes defeitos nos outros, reconhece-os primeiramente em ti com muita humildade. No caso de existir realmente o pecado em alguém, mais facilmente ele corrigir-se-á se for compreendido bondosamente. A correção que não ofende, obrigá-lo-á a emendar-se. Aquela pessoa confirmará quanto querias dizer e tu mesma te sentirás mais segura, impedindo a intervenção do demônio, o qual não conseguirá enganar-te, prejudicando teu aperfeiçoamento. Convence-te de que não deves acreditar em opiniões. Ao escutá-las, atira-as para trás, nas costas; não as leve em consideração. Procura ir examinando apenas tua própria pessoa e minha bondade, tão generosa. Esta é a atitude de quem alcançou o último grau da perfeição e que, como já disse, sempre retorna ao vale do autoconhecimento. Atitude que, no entanto, não lhe impede o elevado estado de união comigo.
Esta é a primeira coisa que deves praticar, a fim de me servires na verdade.

24.5.2 - Não julgar o interior do homem

Passo a falar da segunda atitude.
Quando estiveres orando diante de mim por alguém e acontecer de perceberes a luz da graça numa pessoa e em outra não, parecendo-te que esta última está envolta em trevas, não deves concluir que a segunda se acha em pecado mortal. Teu julgamento seria muitas vezes errado.
Outras vezes, ao pedires por uma mesma pessoa, de uma feita a verás luminosa e tua alma sentir-se-á fortalecida naquele amor de caridade pelo qual o homem participa do bem do outro; numa outra vez, o espírito daquela pessoa parecerá distante de mim, como que em trevas e pecado, fato que tornará penosa tua oração em seu favor, ao quereres conservá-la diante de mim.
Este último fato pode acontecer, às vezes, devido à presença de pecados naquele por quem oras; mas, na maioria dos casos será por outras razões. Fui eu, Deus eterno, que me afastei da pessoa. Conforme expliquei ao tratar dos estados da alma (18.1.2), retiro-me das almas a fim de que elas progridam no amor. Embora a alma continue em estado de graça, ausento-me quanto às consolações e deixo o espírito na aridez, tristonho e vazio. Quando alguém ora por tal pessoa, costumo transmitir-lhe esses mesmos sentimentos. Quero que ambos, unidos, se entreajudem no afastamento da nuvem que pesa sobre aquela alma.
Como vês, filha querida, seria iníquo e digno de repreensão, se alguém julgasse que a alma está em pecado mortal somente porque a fiz ver envolta em dificuldades, privada de consolações espirituais que possuía antes. Tu e meus servidores deveis esforçar-vos por conhecer-vos melhor, bem como, por conhecer-me. Quanto a julgamentos semelhantes, deixai-os para mim. A mim, o que me pertence; vós, sede compassivos e desejosos de minha glória e salvação dos outros homens. Manifestai as virtude e repreendei os vícios, tanto em vós como nos outros, segundo a maneira como indiquei acima (24.5.1). Desse modo chegareis até mim, após entender e viver a mensagem do meu Filho, a qual consiste na preocupação consigo mesmo, não com os demais. É assim que deveis agir, se pretendeis praticar a virtude desinteressadamente e perseverar na última e perfeitíssima iluminação (24.3), repleta de desejo santo, isto é, de zelo pela minha glória e pela salvação do próximo.

24.5.3 - Respeitar a espiritualidade alheia 

Após discorrer sobre as duas primeiras atitudes, ocupo-me da terceira. Quero que me prestes muita atenção, a fim de que o demônio e tua fraca inteligência não te façam obrigar outras pessoas a viver como tu vives. Tal ensinamento seria contrário à mensagem do meu Filho.
Ao ver que a maioria das almas segue pela estrada da mortificação, alguém poderia querer orientar todos os outros a seguirem pelo mesmo caminho. Ao notar que uma pessoa não concorda, aquele conselheiro se entristece, fica intimamente contrariado, convencido de que o fulano age mal.
Grande engano! Na realidade está mais certo quem pareceria andar errado, fazendo menos penitência. Pelo menos será mais virtuoso, sem grandes macerações, do que aquele que o fica a criticar. Já te disse que devem ser humildes aqueles que se mortificam. Considerem as penitência meros instrumentos, não como a meta. Normalmente, as murmurações prejudicam o aperfeiçoamento no amor. Quem se penitencia, não seja mau, não ponha a sua santidade unicamente no macerar o corpo. O aperfeiçoamento encontra-se na eliminação da vontade própria. A atitude desejável para todos é que submetam a má vontade pessoal à minha vontade, tão amorosa. É isso o que eu desejo. É esse o ensinamento do meu Filho. Quem o seguir estará na verdade.
Não desprezo a penitência. Ela é útil para reprimir o corpo, quando ele se opõe ao espírito. Mas, filha querida, não a deves impor como norma. Nem todos os corpos são iguais, nem todos possuem a mesma resistência física. Um é mais forte que o outro. Como afirmei, muitas vezes motivos fortuitos aconselham a interrupção de alguma mortificação iniciada. Ora, seria falsa tal afirmação, se a penitência fosse algo de essencial para ti ou para outra pessoa. Se a perfeição estivesse na mortificação, ao deixá-la, julgaríeis estar sem minha presença, cairíeis no tédio, na tristeza, na amargura e na confusão. Deixaríeis o exercício da oração, realizando ao mortificar-se. Interrompida assim, com tantos inconvenientes, a mortificação nem seria mais agradável ao ser retomada.
Eis o que aconteceria, se a essência da perfeição consistisse na mortificação exterior e não no amor pela virtude. Grande é o mal causado pela mentalidade, que põe na penitência o fundamento da vida espiritual. Tal mentalidade deixa a pessoa sem compreensão para com os outros, murmuradora, desanimada e cheia de angústias. Além disso, todo vosso esforço para honrar se basearia em ações finitas, ao passo que exijo de vós um amor infinito. É indispensável que considereis como elemento básico de vosso aperfeiçoamento a eliminação da vontade própria; submetendo-a a mim, fareis um ato de desejo agradável, inflamado, infinito para minha honra e para a salvação dos homens. Será um ato de desejo santo, que em nada se escandaliza, que em tudo se alegra, qualquer seja a situação que eu permita para vosso proveito.
Não se comportam desse modo os infelizes que seguem por estradas diferentes daquela, reta e suave, ensinada por meu Filho. Comportam-se de outro jeito: julgam os acontecimentos de acordo com a própria cegueira e com o errado ponto de vista; caminham como louco sem tirar proveito dos bens terrenos nem gozar dos celestes. Como afirmei antes, já possuem a garantia do inferno. 

24.5.4 - Resumo das três atitudes anteriores

Essa é a resposta às tuas perguntas, filha querida, sobre a maneira de corrigir o próximo sem ser enganada pelo demônio e sem conformar-te ao teu fraco modo de pensar. Disse (24.5.1) que deves corrigir o próximo genericamente, sem descer aos casos pessoais. A não ser que eu te revele expressamente a situação de pecado; mas assim mesmo, com muita humildade.
Disse também (24.5.1), e torno a repetir, que jamais deves julgar o próximo, em geral ou em particular, pronunciando-te sobre o estado da sua alma, seja para o bem como para o mal. Expliquei o motivo: o julgamento pessoal é sempre enganador. Tu e os outros servidores meus, deixai para mim todo julgamento.
enfim,expus a doutrina relativa ao fundamento verdadeiro da perfeição (24.5.3), o qual deves ensinar a quem te procurar desejoso de abandonar o pecado e praticar a virtude. Ensinei que deves apresentar como atitude básica o amor à virtude, o autoconhecimento e o conhecimento do meu ser. Ensinarás a tais pessoas, que destruam a vontade própria, que jamais se revoltem contra mim, que considerem a penitência como um meio, não como finalidade principal. Afirmei ainda que não deves aconselhar a mortificação em grau igual para todos, mas de acordo com a capacidade de cada um, em seu estado de vida. A uns pedirás pouco, a outros mais, segundo a capacidade corporal.
Pelo fato de dizer-te que só deves corrigir genericamente, não pretendo afirmar que jamais hás de corrigir pessoalmente. Serás até obrigada a fazê-lo. Quando alguém se obstina em não emendar-se, podes recorrer a duas ou mais pessoas; e se isso for inútil, apresenta o caso à hierarquia da santa Igreja. Ensinei que não deves corrigir tomando como norma teu modo pessoal de ver, teu sentimento interior; baseando-te nele, não podes mudar de opinião sobre as pessoas. Sem prova evidente ou revelação expressa, não repreendas ninguém. Tal modo de agir é o mais seguro para ti, pois ele evita que o demônio te engane com aparências de amor fraterno.

24.6 - Visão e alegria espiritual

Filha querida, expliquei-te o que é necessário fazer para o aperfeiçoamento da alma; vou atender agora àquele teu pedido, relativo à minha presença durante as visões ou demais manifestações, que alguém julgue ter. Disse que o sinal distintivo de que estou visitando a alma é a alegria, o desejo das virtudes e, sobretudo, grande humildade e amor. Tu me perguntaste, porém, se a alegria não pode iludir a alma. Desejas estar do lado mais seguro, queres um sinal definitivo de que não padeça engano. Vou falar-te de uma possível ilusão e sobre o modo de saber quando a alegria é autêntica ou não.
A ilusão possível é esta: alegra-se uma pessoa, quando obtém aquilo que desejava. E quanto maior for seu desejo, menor atenção prestará à causa da alegria. A posse do objeto desejado, o prazer sentido, impedem que sua consideração seja clara e distinta. Isto acontece com almas que gostam de consolações espirituais e vivem à procura de visões, depositando maior interesse nelas que em mim. Já te disse (18.1.2) que essa é a atitude daqueles que estão no estado do amor imperfeito. Eles se aplicam mais em obter consolações, do que em amar. Pois bem, é exatamente neste ponto que se acha a ilusão relativa à alegria. Outros enganos existem, mas deles já falei longamente (18.3.2). No caso presente, como acontece?
Quem ama as consolações espirituais, alegra-se grandemente ao recebê-las. Contente em possuir quanto desejava, muitas vezes se rejubila por artifícios do demônio. Já ensinei (18.3.2.3) que as visões ou consolações provocadas pelo demônio começam causando alegria, mas que depois se transformam em sofrimento e remorso, num vazio da caridade e das virtudes que leva a pessoa ao abandono da oração. Portanto, se a satisfação e a alegria não estiverem acompanhadas de amor pela virtude; se a pessoa não for humilde e muito caridosa, é sinal de que tal visita ou consolação não procede de mim, mas do diabo. Como disse, todo prazer espiritual não acompanhado de virtude, revela claramente que sua origem provém do apego à auto-consolação. 
Todo homem se alegra ao conseguir o que ama; esta é a própria condição do amor. Disto decorre, pois, que não podes confiar somente no contentamento interior, mesmo quando ele persevere depois da visão.Por si mesma, sem outro recurso à prudência humana, a alegria é insuficiente para dizer se se trata de engano do demônio. É preciso agir com discernimento, examinando se o contentamento está acompanhado ou não pelo amor à virtude. Isso dirá se a visita interior é minha ou do diabo. O sinal de que falava, portanto, é o seguinte: o que prova minha presença na alma é a alegria interior com as virtudes. É um sinal que demonstra a verdade: diz se há ilusão ou não, indica se o contentamento vem de mim, do egoísmo ou do demônio. A alegria causada por mim contém amor à virtude; aquela causada pelo diabo limita-se unicamente ao contentamento. Um exame atento fará ver que a virtude da pessoa, após a consolação, continua a mesma de antes; o contentamento em si é somente indício do amor por si mesmo.
Quero dizer-te, porém, que somente os imperfeitos caem nesta ilusão do enlevo pelo prazer espiritual, dando mais valor ao dom que ao doador. Os homens inflamados de caridade não pensam em si mesmos, mas em mim, o doador. Por atribuírem pouco valor ao tempo presente, colocam sua felicidade espiritual em mim e não se deixam enganar. Se o diabo os tenta iludir, manifestando seus pensamentos em forma de luz, dando-lhes alegria, eles sabem distinguir. Desapegados das consolações, usam de discernimento e percebem a ilusão. Por tratar-se de uma alegria passageira, sentem-se no escuro; humilham-se, então, mediante o autoconhecimento, deixam de lado aquela consolação e apegam-se fortemente à mensagem do meu Filho. O demônio, confundido, não mais voltará, ou somente raras vezes.
As pessoas apegadas às consolações costumam receber muitas visitas do diabo em forma de luz. Que tais pessoas procurem entender, pela maneira explicada, se se trata de uma ilusão: investigue se a alegria interior está acompanhada pelas virtudes; se a alma sai dessa visão com maior humildade, caridade, desejo santo, ou seja, com mais amor por mim e pela salvação dos outros. Bondosamente providenciei que todos vós, perfeitos e imperfeitos, qualquer que seja vossa situação, não sejais enganados. Basta ter a mente iluminada pela fé e impedir que o diabo vos obscureça. Se vós mesmos não afastais o egoísmo, ninguém o conseguirá destruir em vosso lugar.

24.7 - Exortação à prece

Filha querida, disse todas essas coisas com clareza; esclareci teu espírito sobre as possíveis ilusões do demônio. Atendi aos teus pedidos, porque não desprezo os desejos dos meus servidores e costumo dar atenção a quem me implora. Até desagradam-me aqueles que, por não viver a mensagem de meu Filho, deixam de bater à porta da sabedoria. Quem realiza sua mensagem, bate à minha porta, chama-me na voz do amor e das orações humildes e contínuas. Sou o Pai que vos dá como alimento a graça do meu Filho. Ele é a porta, ele é a verdade.
Às vezes, para experimentar vosso amor e perseverança, finjo não escutar. Na realidade, escuto e concedo tudo quanto precisais. Dou-vos o desejo e a voz para pedi-lo. Se noto que sois perseverante, bondosos e que estais voltados para mim, atendo aos vossos anseios. Meu Filho vos ensinou a clamar diante de mim quando disse: "Chamai e sereis atendidos, batei e ser-vos-á aberto, pedi e recebereis". Desejo que seja esse teu modo de agir. Nunca desanimes de pedir meu auxílio; não abaixes a voz ao suplicar que eu use de misericórdia para com o mundo. Não deixes de bater à porta, que é meu Filho, mediante a vivência de sua mensagem. Alegra-te com ele na cruz, dedica-te aos outros e ao louvor do meu nome. Chora angustiadamente sobre o homem morto, quando o vês carregado para o cemitério em grandíssima miséria espiritual, impossível de ser descrita. Quero ser misericordioso ante esse clamor e pranto. É quanto exijo dos meus servidores; tal será a prova de que me amam. Como disse acima (24.8), não desprezo seus desejos!


     

23 . CATARINA OBEDECE À ORDEM DIVINA.

23 . CATARINA OBEDECE À ORDEM DIVINA.



Então aquela serva obedeceu a Deus. 
Elevou seu espírito para compreender a verdade sobre os assuntos que perguntara.

22. PEDIDO DE ATENÇÃO A CATARINA.

22. PEDIDO DE ATENÇÃO A CATARINA.



Então Deus Pai, satisfeito com as intenções daquela serva pela sinceridade do seu coração e pelo desejo de servi-lo, olhou para ela com piedade e misericórdia, dizendo:
- Ó filha e esposa, tão querida e amada! Eleva-te e esforça-te por compreender o inefável amor que sinto por ti e pelos meus servidores. Aplica o ouvido interior dos teus anseios. Quando me escutas, precisas de entendimento. Quero que te eleves acima da sensibilidade. Alegro-me com o teu pedido e vou responder-te. Certamente vós não aumentais a minha felicidade, pois sou aquele que sou! Apenas alegro-me em mim mesmo pelas coisas que criei.

21 . CATARINA PEDE ESCLARECIMENTOS A DEUS.

21. CATARINA PEDE ESCLARECIMENTOS A DEUS.



Então aquela serva, inflamada de amor diante da bondosa explicação recebida de Deus sobre os estados da vida espiritual, disse-lhe:
- Agradeço-te, agradeço-te, ó Pai eterno, que realizas as santas aspirações, zeloso autor da nossa salvação, que nos amaste em teu Filho unigênito quando ainda éramos teus inimigos. Por esse teu ardente abismo de amor, imploro tua graça e o perdão. Graças a eles, consiga eu chegar livremente à tua luz, isenta de toda escuridão. Que eu progrida rapidamente na mensagem de teu Filho; que eu consiga superar as dificuldades, diante das quais estou insegura. Gostaria, Pai eterno, que desses as devidas explicações antes de passares a outros assuntos além dos estados da alma.
A primeira dificuldade é a seguinte: se alguém me procurar, ou dirigir-se a outro servidor teu, pedindo conselhos desejoso de servir-te, que conselhos devo dar? Lembro-me, ó Deus eterno, de que me disseste: "Sou aquele que gosta de poucas palavras e muitas ações", mas ficaria muito satisfeita se me falasses ainda. Pode acontecer, quando estou orando por todos os homens ou por um teu servidor, ver a alma deles bem disposta, parecendo-me que ela é do teu agrado, e ver a alma de um outro nas trevas. Em tais casos, Pai eterno, posso pensar que o primeiro se acha na luz e o outro na escuridão? Além disso, se notar que uma pessoa vive mortificando-se, e uma outra não, devo concluir que é mais perfeito aquele que se penitencia? Rogo-te; não seja eu enganada por minha limitada compreensão. Explica-me no caso particular, quanto disseste em geral.
A segunda dificuldade sobre a qual peço esclarecimentos é esta: quais são os sinais reveladores de tua presença ou "visita" na alma, para que eu possa discernir se és tu ou não? Se bem me lembro, disseste que a pessoa sente alegria e fervor na prática das virtudes. Gostaria de saber: tal alegria não pode confundir-se com a satisfação pessoal? Se assim for, então devo limitar-me a olhar a prática das virtudes?
São estas as perguntas que te faço, verdade eterna, para que eu possa servir a ti e ao próximo sem cair em falsos julgamentos contra pessoas, contra servidores teus. De fato, creio que o julgamento falso afasta o homem de ti. Prefiro não incidir nesse inconveniente.

Carta Aberta aos Católicos Perplexos


Carta Aberta aos Católicos Perplexos
    S. E. R. Mons. Marcel Lefebvre

22 . As famílias devem reagir


22 . As famílias devem reagir

É o tempo apropriado de reagir. Quando Gaudium et Spes fala do movimento da história que “se torna tão rápido que cada um tem dificuldade de o seguir”, pode-se entender este movimento como uma precipitação das sociedades liberais na desagregação e no caos. Acautelemo-nos de o seguir!
Como compreender que dirigentes apelem para a religião cristã ao passo que destroem toda a autoridade no Estado? Importa ao contrário restabelecê-la, que foi querida pela Providência nas sociedades naturais de direito divino cuja influência neste mundo é primordial: a família e a sociedade civil. É a família que recebeu nestes últimos tempos os mais rudes golpes; a passagem para o socialismo em países como a França e a Espanha não fez senão acelerar o processo.
As leis e medidas que se sucederam mostram uma grande coesão na vontade de arruinar a instituição familiar: diminuição da autoridade paterna, divórcio facilitado, desaparecimento da responsabilidade no ato da procriação, reconhecimento administrativo dos casais irregulares e mesmo de duplas homossexuais, coabitação juvenil, casamento de experiência, diminuição das ajudas sociais e fiscais às famílias numerosas... O mesmo Estado, em seus interesses próprios, começa a perceber as consequências disto no que toca à diminuição da natalidade, ele se pergunta como, num tempo próximo, as jovens gerações poderão assegurar os regimes de retração daquelas que deixaram de ser economicamente ativas. Mas os efeitos são consideravelmente mais graves no domínio espiritual.
Os católicos não devem seguir mas ponderar com todo o seu peso, uma vez que são também cidadãos, para endireitar tudo o que for preciso. É por isso que eles não poderiam ficar à margem da política. Portanto seu esforço será sobretudo sensível na educação que proporcionam a seus filhos.
Sobre este assunto, a autoridade é contestada nas suas próprias fontes por aqueles que declaram que “os pais não são os proprietários dos filhos”, querendo dizer com isto que a educação destes cabe ao Estado, com suas escolas leigas, suas creches, suas maternais. Censuram-se os pais de não respeitar a “liberdade de consciência” de seus filhos quando os educam segundo suas próprias convicções religiosas.
Estas idéias remontam aos filósofos ingleses do século XVII que não queriam ver nos homens senão indivíduos isolados, independentes de nascimento, iguais entre si, subtraídos a toda autoridade. Nós sabemos que isto é falso. A criança recebe tudo de seu pai e de sua mãe, alimento corporal, intelectual, educação moral, social. Eles se fazem ajudar por professores que partilharão, no espírito dos jovens, a sua autoridade mas, seja por meio de uns ou por meio de outros, a quase totalidade da ciência adquirida no decurso da adolescência pessoal será mais uma ciência apreendida, recebida, aceita, do que uma ciência deduzida da observação e da experiência pessoal. Os conhecimentos vêm por uma parte considerável da autoridade que transmite. O jovem estudante acredita em seus pais, em seus professores, em seus livros e assim seu saber se estende.
Isto é ainda mais verdadeiro com os conhecimentos religiosos, com a prática da religião, com o exercício da moral conforme à fé, às tradições, aos costumes. Os homens em geral vivem em função das tradições familiares, isto se observa em toda a superfície do globo. A conversão a uma outra religião do que aquela que se recebeu durante a sua infância encontra sérios obstáculos.
Esta extraordinária influência da família e do meio é querida por Deus. Ele quis que seus benefícios se transmitissem em primeiro lugar através da família; é por esta razão que concedeu ao pai de família uma grande autoridade, um imenso poder sobre a sociedade familiar, sobre sua esposa, sobre seus filhos. A criança nasce numa fraqueza tão grande que se pode julgar da necessidade absoluta da permanência do lar, de sua indissolubilidade.
Querer exaltar a personalidade e a consciência da criança em detrimento da autoridade familiar, é fazer a sua desgraça, impeli-la à revolta, ao desprezo dos pais, enquanto que a longevidade é prometida àqueles que honrarem os seus. São Paulo, ao relembrá-lo, estabelece também um dever aos pais de não exasperarem os filhos, mas de educá-los na disciplina e no temor do Senhor.
Se fosse preciso esperar ter a inteligência da verdade religiosa para crer e converter-se, não haveria senão bem poucos cristãos atualmente. Crê-se nas verdades religiosas porque as testemunhas são dignas de credibilidade por sua santidade, seu desinteresse, sua caridade. Pois, como diz Santo Agostinho, a fé dá inteligência.
A função dos pais tornou-se muito difícil. Nós o vimos, a maioria das escolas livres foram laicizadas de fato, e nelas não se ensina mais a verdadeira religião nem as ciências profanas a luz da fé. Os catecismos difundem o modernismo. A vida trepidante é devoradora de tempo, as necessidades profissionais distanciam pais e filhos dos avôs e avós que participavam outrora da educação. Os católicos não estão apenas perplexos mas desarmados.
Mas isto absolutamente não a ponto de não poderem assegurar o essencial, suprindo a graça de Deus o resto. O que é preciso fazer? Existem escolas verdadeiramente católicas, se bem que em número reduzido. Enviai para lá vossos filhos, mesmo se isto pesar no vosso orçamento. Abri novas, como alguns já o fizeram. Se não podeis frequentar senão escolas onde o ensino é desnaturado, manifestai-vos, reclamai, não deixeis os educadores fazer vossos filhos perder a fé.
Lede, relede em família o catecismo de Trento, o mais belo, o mais perfeito e o mais completo. Organizai “catecismos paralelos” sob a direção espiritual de bons sacerdotes, não tenhais medo de ser tratados, como nós, de “selvagens”. Aliás, numerosos grupos já funcionam que acolherão vossos filhos.
Rejeitai os livros que veiculam o veneno modernista. Fazei-vos aconselhar. Editores corajosos difundem excelentes obras e reimprimem as que os progressistas destruíram. Não adquirais qualquer Bíblia; toda família cristã deveria possuir a Vulgata, tradução latina feita por são Jerônimo no século IV e canonizada pela Igreja1. Atende-vos à verdadeira interpretação das Escrituras, conservai a verdadeira missa e os sacramentos tais como eram administrados por toda a parte até bem pouco.
Atualmente o demônio desencadeou-se contra a Igreja, pois é bem disso que se trata: nós assistimos talvez a uma de suas últimas batalhas, uma batalha geral. Ele ataca em todas as frentes e se Nossa Senhora de Fátima disse que um dia ele subiria até as mais altas esferas da Igreja, é que isto podia acontecer. Nada afirmo de mim mesmo, entretanto há sinais que podem fazer-nos pensar que, nos mais elevados organismos romanos, pessoas perderam a fé.
Devem-se tomar medidas espirituais urgentes. É preciso rezar, fazer penitência, como a Santíssima Virgem o pediu, recitar o terço em família. As pessoas, viu-se em cada guerra, se põem a rezar quando as bombas começam a cair. Mas precisamente, elas caem neste momento: estamos a ponto de perder a fé. Compreendeis que isto ultrapassa em gravidade todas as catástrofes que os homens temem, as crises econômicas mundiais ou os conflitos atômicos?
Renovações se impõem, mas não creiais que não possamos contar para isto com a juventude. Não é toda a juventude que está corrompida, como se tenta persuadir-nos. Muitos têm um ideal, a muitos outros basta propor um. Abundam os exemplos de movimentos que fazem apelo com sucesso à generosidade: os mosteiros fiéis à tradição os atraem, não faltam vocações de jovens seminaristas ou de noviços que pedem formação. Há um magnífico trabalho a realizar conforme as instruções dadas pelos Apóstolos: Tenete traditiones... Permanete in iis quae didicistis.
O velho mundo chamado a desaparecer é o do aborto. As famílias fiéis à tradição são ao mesmo tempo famílias numerosas, sua própria fé lhes assegura a posteridade. “Crescei e multiplicai-vos!” Conservando o que a Igreja sempre ensinou, vós vos ligais ao futuro.

  1. 1. As traduções francesas da Vulgata são, infelizmente, difíceis de encontrar. Pode-se referir quer à antiga edição de “Crampon”, quer, para o Novo Testamento, à edição feita por Dominique Martin Morin.

21 . Nem herege nem cismático


21 . Nem herege nem cismático

A declaração de 21 de novembro de 1974 que desencadeou o processo do qual eu acabo de falar, terminava por estas palavras: ”Agindo assim... nós estamos convencidos de permanecer fiéis à Igreja Católica e romana, a todos os sucessores de Pedro, e de ser os fiéis dispensadores dos mistérios de Nosso Senhor Jesus Cristo.” O “Osservatore Romano”, publicando o texto, omitiu este parágrafo. Há dez anos e mais, nossos adversários estão interessados em rejeitar-nos da comunhão da Igreja deixando entender que não aceitamos a autoridade do papa. Seria bem cômodo fazer de nós uma seita e declarar-nos cismáticos. Quantas vezes a palavra cisma foi pronunciada a nosso respeito!
Não cessei de repetir: se alguém se separa do papa, este alguém não serei eu. A questão se resume nisto: o poder do papa na Igreja é um poder supremo, mas não absoluto e ilimitado, pois está submetido ao poder divino, que se exprime na tradição, na Sagrada Escritura e nas definições já promulgadas pelo magistério eclesiástico. De fato este poder encontra seus limites no fim para o qual ele foi dado sobre a terra ao Vigário de Cristo, fim que Pio IX definiu claramente na Constituição Pastor aeternus do concílio Vaticano I. Não exprimo, pois, uma teoria pessoal ao dizê-lo.
A obediência cega não é católica; ninguém esta isento da responsabilidade por ter obedecido aos homens mais que a Deus, aceitando ordens duma autoridade superior, seja ela do papa, se se revelam contrárias à vontade de Deus tal como a tradição no-la faz conhecer com certeza. Não se poderia considerar uma tal eventualidade, certamente, quando o papa compromete sua infalibilidade, mas ele não o faz senão num número reduzido de casos. É um erro pensar que toda a palavra saída da boca do papa é infalível.
Dito isto, eu não sou daqueles que insinuam ou afirmam que Paulo VI era herege e que, pelo próprio fato de sua heresia, não era mais papa. Em consequência disto, a maior parte dos cardeais nomeados por ele não seriam cardeais e não teriam validamente eleito um outro papa. João Paulo I e João Paulo II por isso não teriam sido eleitos legitimamente. Eis a posição daqueles que se intitulam sede-vacantistas.
É preciso reconhecer que o papa Paulo VI colocou um sério problema para a consciência dos católicos. Este pontífice causou mais danos à Igreja do que a Revolução de 1789. Fatos precisos como as assinaturas apostas ao artigo 7 da “Institutio Generalis” assim como ao documento sobre a liberdade religiosa, são escandalosos. Mas o problema não é tão simples de saber se um papa pode ser herege. Bom número de teólogos pensam que ele o pode ser como doutor particular, não como doutor da Igreja universal. Seria preciso portanto examinar em que medida Paulo VI quis comprometer sua infalibilidade em casos como aqueles que acabo de citar.
Ora, nós pudemos ver que ele agiu muito mais como liberal do que se atendo à heresia. Com efeito, desde que se lhe fazia notar o perigo que corria, tornava o texto contraditório acrescentando uma fórmula oposta ao que era afirmado na redação: conhece-se o exemplo famoso da nota explicativa preliminar inserida em seguida à constituição Lumen Gentium sobre a colegialidade. Realmente ele redigia uma fórmula equívoca, o que é próprio do liberal, por natureza incoerente.
O liberalismo de Paulo VI, reconhecido por seu amigo o cardeal Danielou, basta para explicar os desastres de seu pontificado. O católico liberal é uma pessoa de duplo aspecto, em contínua contradição. Ele quer permanecer católico mas é possuído pela sede de agradar ao mundo. Um papa pode ser liberal e continuar papa? A Igreja sempre censurou severamente os católicos liberais mas nunca os excomungou. Os sedevacantistas adiantam um outro argumento: o afastamento dos cardeais de mais de 80 anos e os conventículos que prepararam os dois últimos conclaves não tornam inválida a eleição destes papas? Inválida é afirmar demais, mas eventualmente duvidosa. Todavia a aceitação posterior e unânime do fato por parte dos cardeais e do clero romano basta para tornar válida a eleição. Tal é a opinião dos teólogos.
O raciocínio daqueles que afirmam a inexistência do papa coloca a Igreja numa situação inextricável. A questão da visibilidade da Igreja é por demais necessária à sua existência para que Deus possa omiti-la durante decênios. Quem nos dirá onde está o futuro papa? Como se poderá designá-lo, se não há mais cardeais? Vemos aí um espírito cismático. Nossa Fraternidade se recusa absolutamente a entrar em semelhantes raciocínios. Nós queremos continuar ligados a Roma, ao sucessor de Pedro, recusando porém o liberalismo de Paulo VI, por fidelidade a seus predecessores.
É claro que em casos como a liberdade religiosa, a hospitalidade eucarística autorizada pelo novo direito canônico ou a colegialidade concebida como a afirmação de dois poderes supremos na Igreja, é um dever para todo clérigo e fiel católico resistir e recusar a obediência. Esta resistência deve ser pública, se o mal é público e representa um objeto de escândalo para as almas. É por isso que, referindo-nos a Santo Tomás de Aquino, Dom Castro Mayer e eu enviamos a 21 de novembro de 1983, uma carta aberta ao papa João Paulo II para suplicar-lhe que denunciasse as causas principais da situação dramática na qual se debate a Igreja. Todas as diligências que fizemos em particular durante quinze anos foram em vão e calar-nos parecer-nos-ia fazer de nós cúmplices da confusão das almas no mundo inteiro.
“Santíssimo Padre, escrevíamos, é urgente que esse mal estar cesse logo, porque o rebanho se dispersa e as ovelhas abandonadas estão seguindo mercenários. Nós vos conjuramos, pelo bem da fé católica e da salvação das almas, a reafirmar as verdades contrárias a estes erros. Nosso grito de alarme se torna ainda mais veemente diante dos erros, para não dizer heresias do novo direito canônico, e das cerimônias e discursos ao ensejo do quinto centenário do nascimento de Lutero.”
Não tivemos resposta, mas fizemos o que devíamos. Não podemos desesperar como se se tratasse duma empresa humana. As convulsões atuais passarão como passaram todas as heresias. Será preciso voltar um dia à tradição; na autoridade será necessário que reapareçam os poderes significados pela tiara, que um tribunal protetor da fé e dos bons costumes se estabeleça de novo permanentemente, que os bispos reencontrem seus poderes e sua iniciativa pessoal.
Será preciso liberar o verdadeiro trabalho apostólico de todos os impedimentos que hoje o paralisam e que fazem desaparecer o essencial da mensagem; restituir aos seminários sua verdadeira função, recriar sociedades religiosas, restaurar as escolas católicas e as universidades desembaraçando-as dos programas leigos do Estado, sustentar organizações patronais e operárias decididas a colaborar fraternalmente no respeito dos deveres e dos direitos de todos, interditando-se o flagelo social da greve, que não passa de uma guerra civil fria, promover enfim uma legislação civil conforme às leis da Igreja e ajudar na designação de representantes católicos movidos pela vontade de orientar a sociedade para um reconhecimento oficial do reinado social de Nosso Senhor.
Enfim, pois, que dizemos todos os dias quando rezamos? “Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”. E no Glória da missa? “Vós sois o único Senhor, Jesus Cristo”. Nós cantaríamos isto, e, apenas saídos da Igreja, diríamos: ”Ah não, estas noções estão ultrapassadas”, é impossível encarar no mundo atual a possibilidade de falar no reino de Jesus Cristo? Vivemos nós no ilogismo? Somos cristãos ou não?
As nações se debatem em dificuldades inextricáveis, em muitos lugares a guerra se eterniza, os homens tremem ao pensar na possível catástrofe nuclear, procura-se o que poderia ser feito para que a situação econômica se reerga, o dinheiro se valorize, o desemprego desapareça, as indústrias sejam prósperas. Pois bem, mesmo do ponto de vista econômico, é preciso que Nosso Senhor reine, porque este reino é o dos princípios de amor, dos mandamentos da lei de Deus, que criam um equilíbrio na sociedade, trazem a justiça e a paz. Pensais que seja uma atitude cristã colocar sua esperança em tal ou qual homem político, em tal combinação de partidos, imaginando que talvez um dia um programa melhor que outro resolverá os problemas dum modo seguro e definitivo, enquanto que deliberadamente se põe de lado “o único Senhor” como se Ele nada tivesse a ver com os assuntos humanos, como se isto não lhe fosse concernente? Qual é a fé daqueles que fazem de sua vida duas partes, com uma barreira estanque entre sua religião e suas outras preocupações políticas, profissionais, etc.? Deus que criou o céu e a terra não seria capaz de regular nossas miseráveis dificuldades materiais e sociais? Se vós já rezastes a Ele nos maus momentos de vossa existência, sabeis por experiência que Ele não dá pedras a seus filhos que lhe pedem pão.
A ordem social cristã se situa no oposto das teorias marxistas que jamais causaram, em todas as partes do mundo onde foram postas em prática, senão a miséria, o esmagamento dos mais fracos, o desprezo do homem e a morte. Ela respeita a propriedade particular, protege a família contra tudo o que a corrompe, encoraja a família numerosa e a presença da mulher no lar, deixa uma legítima autonomia às iniciativas privadas, encoraja as pequenas e médias indústrias, favorece o retorno à terra e estima em seu justo valor a agricultura, preconiza as uniões profissionais, concede a liberdade escolar, protege os cidadãos contra toda a forma de subversão e de revolução.
Esta ordem cristã se distingue com toda a certeza também dos regimes liberais fundados na separação da Igreja e do Estado e cuja impotência para superar as crises se afirma cada vez mais. Como o poderiam, após estarem voluntariamente privados d'Aquele que é “a luz dos homens”? Como poderiam reunir as energias dos cidadãos, uma vez que não têm mais outro ideal a propor-lhes senão o bem estar e o conforto? Eles puderam entreter a ilusão durante certo tempo porque os povos conservavam hábitos de pensamento cristãos e seus dirigentes mantinham, mais ou menos conscientemente, alguns valores. Na época das “reconsiderações”, as referências implícitas à vontade de Deus desaparecem; os sistemas liberais, abandonados a si mesmos, não sendo mais acionados por alguma idéia superior, se extenuam, são uma presa fácil para as ideologias subversivas.
Falar da ordem social cristã não é portanto apegar-se a um passado que teria terminado; é, ao contrário, uma posição de futuro com o qual não deveis ter medo de contar. Vós não travais um combate de retaguarda, vós sois os que sabem, porque receberam as lições d'Aquele que disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida”. Temos a superioridade de possuir a Verdade, o que não é defeito nosso, não temos que nos ensoberbecer com isto mas devemos agir conseqüentemente; a Igreja tem sobre o erro a superioridade de possuir a Verdade. Cabe a Ela, com a graça de Deus, propagá-la e não a esconder vergonhosamente sob o alqueire.
Ainda menos misturá-la ao joio, como se vê fazer constantemente. Li no Osservatore Romano, com a assinatura de Paolo Befani1, um artigo interessante sobre o favor concedido ao socialismo pelo Vaticano. O autor compara a situação da América Central e a da Polônia e escreve:
“A Igreja, deixando a situação da Europa, se encontra confrontada duma parte com a situação dos países da América Latina e a influência dos E.U.A. que se exerce sobre eles, e doutra parte com a situação da Polônia que se encontra na órbita do império soviético.
“Chocando-se de encontro a estas duas fronteiras, a Igreja que, com o concílio, assumiu e ultrapassou as conquistas líbero-democráticas da Revolução Francesa, e que na sua marcha para a frente (ver a encíclica Laborem exercens) se constitui como um “após” da Revolução russa marxista, oferece uma solução à falência do marxismo nesta “chave” dum “socialismo pós-marxista, democrático, de raiz cristã, autogestionária e não totalitária.”
“A réplica ao Leste é simbolizada pelo Solidarnosc que arvora a cruz em face aos Estaleiros Lenine. É o erro da América latina procurar a solução no comunismo marxista, num socialismo de raiz anticristã.”
Eis aí bem o ilusionismo liberal que associa palavras contraditórias com a persuasão de exprimir uma verdade! É a estes sonhadores adúlteros obcecados pela idéia de consorciar a Igreja com a revolução que nós devemos o caos do mundo cristão que abre as portas ao comunismo. São Pio X dizia dos sillonistas: “Eles anseiam pelo socialismo, com o olhar fixo numa quimera”. Seus sucessores continuam. Após a democracia cristã, o socialismo cristão! Acabaremos por chegar ao cristianismo ateu.
A solução a encontrar não concerne somente à falência do marxismo, mas à falência da democracia cristã, que não é preciso demonstrar. Basta de compromissos, de uniões contra a natureza! Que iremos buscar nestas águas turvas? O católico tem a verdadeira “chave”, é seu dever trabalhar com todas as forças, seja comprometendo-se pessoalmente na política, seja por seu voto para dar à sua pátria prefeitos, conselheiros, deputados resolvidos a restabelecer a ordem social cristã, a única capaz de obter a paz, a justiça, a verdadeira liberdade. Não há outra solução.

  1. 1. OSSERVATORE ROMANO, 18.1.84.

20. A Missa dita “de S. Pio V”, Missa de sempre


20 . A Missa dita “de S. Pio V”, Missa de sempre

Um fato sem dúvida não deixou de surpreender-vos: em nenhum momento desta questão se tratou da missa, a qual, não obstante, está no coração do conflito. Este silêncio forçado constitui a confissão de que o rito chamado de São Pio V continua bem autorizado.
Nesta matéria, os católicos podem estar perfeitamente tranquilos: esta missa não foi interditada nem o pode ser. São Pio V que, repitamo-lo, não a inventou mas “restabeleceu o missal segundo a regra antiga e os ritos dos Santos Padres”, nos dá todas as garantias na bula Quo Primum, assinada por ele a 14 de julho de 1570. ”Decidimos e declaramos que os Superiores, Administradores, Cônegos, Capelães e outros padres de qualquer título por que sejam designados, ou os Religiosos de qualquer ordem, não podem ser obrigados a celebrar a missa de modo diferente do que fixamos, e que jamais, em tempo algum, quem quer que seja poderá constrangê-los e forçá-los a deixar este missal ou a ab-rogar a presente instrução ou modificá-la, mas que ela permanecerá sempre em vigor e válida, em toda a sua força... Se entretanto alguém se permitisse uma tal alteração, saiba que incorreria na indignação de Deus Todo Poderoso e de seus bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo.”
Supondo que o papa pudesse voltar atrás a respeito deste indulto perpétuo, seria preciso que o fizesse por um ato também solene. A constituição apostólica Missale Romanum de 3 de abril de 1969 autoriza a missa dita de Paulo VI, que não contém interdição alguma expressamente formulada da missa tridentina1. A tal ponto que o cardeal Ottaviani podia dizer em 1971: “O rito tridentino da missa, que eu saiba, não foi abolido”. Mons. Adam que pretendia, na assembléia plenária dos bispos suíços, que a constituição Missae Romanum tinha interditado celebrar, salvo indulto, segundo o rito de São Pio V, teve de retratar-se, depois de lhe pedirem que dissesse em que termos esta interdição teria sido pronunciada.
Daí resulta que se um padre fosse censurado, e mesmo excomungado por esta causa, a condenação seria absolutamente inválida. São Pio V canonizou esta santa missa; ora, um papa não pode revogar uma canonização, assim como não o pode fazer com a de um santo. Nós podemos celebrá-la com toda a tranquilidade e os fiéis assisti-la sem o menor constrangimento, sabendo, quanto ao mais, que ela é a melhor maneira de manter a sua fé.
Isto é tão verdadeiro que Sua Santidade João Paulo II, após vários anos de silêncio sobre o capítulo da missa, acabou por desapertar a golilha imposta aos católicos. A carta da Congregação para o culto divino datada de 3 de outubro de 1984, “autoriza” de novo o rito de são Pio V para os fiéis que o pedirem. Ela impõe, certamente, condições que não podemos aceitar e, doutra parte, não tínhamos necessidade deste indulto para usufruir dum direito que nos foi outorgado até o fim dos tempos.
Mas este primeiro gesto — rezemos para que haja outros desta espécie — tira a suspeita indevidamente lançada sobre a missa e libera as consciências dos católicos perplexos que hesitavam ainda em assisti-la.
Venhamos agora à suspensão a divinis que me golpeou a 22 de julho de 1976. Ela foi consequência das ordenações de 29 de junho em Ecône: fazia três meses nos chegavam de Roma objurgações, súplicas, ordens, ameaças para dizer-nos que cessássemos nossas atividades, que não mais procedêssemos a estas ordenações sacerdotais. Durante os dias que precederam, não deixamos de receber mensagens e enviados: que nos diziam eles? Seis vezes seguidas pediram-me restabelecer relações normais com a Santa Sé, aceitando o rito novo e celebrando-o eu mesmo. Chegou-se até a me enviar um monsenhor que se ofereceu para concelebrar comigo, puseram-me nas mãos um missal novo prometendo-me que se eu celebrasse a missa de Paulo VI em 29 de junho, diante de toda a assembléia vinda para rezar pelos novos sacerdotes, tudo seria dali em diante aplainado entre Roma e mim.
O que significa que não me proibiam conferir estas ordenações mas as queriam segundo a nova liturgia. Ficava claro a partir deste momento que é sobre o problema da missa que desenrolava o drama entre Roma e Ecône, e que ainda se desenrola. Eu disse, no sermão da missa de ordenação: ”Amanhã talvez aparecerá nos jornais a nossa condenação, é muito possível devido a esta ordenação de hoje: serei atingido por uma suspensão provavelmente, estes jovens sacerdotes por uma irregularidade que em princípio deveria impedi-los de dizer a santa missa. É possível. Pois bem eu apelo para São Pio V”.
Certos católicos puderam ser perturbados por minha recusa desta suspensão a divinis. Mas o que é preciso compreender bem, é que tudo isto forma uma cadeia: por que se me recusava efetuar estas ordenações? Porque a Fraternidade tinha sido supressa e o seminário deveria ter sido fechado. Mas precisamente, eu não tinha aceito esta supressão, este fechamento, porque tinham sido decididos ilegalmente, porque as medidas tomadas estavam maculadas por diversos vícios canônicos tanto de forma como de fundo (notadamente o que os autores de direito administrativo denominam “desvio de poderes”, isto é, a utilização de competências contra o objetivo para o qual elas devem ser exercidas). Teria sido preciso que eu aceitasse tudo desde o início, mas não o fiz porque fomos condenados sem julgamento, sem poder defender-nos, sem admoestação, sem escrito e sem recurso. Uma vez que se recusa a primeira sentença, não há razão de não recusar as outras, pois as outras se apóiam sempre naquela. A nulidade duma acarreta a nulidade do que se segue.
Uma outra questão se coloca por vezes aos fiéis e aos sacerdotes, pode-se ter razão contra todo o mundo? Por ocasião de uma conferência de imprensa, o enviado de “Le Monde” me dizia: “Mas enfim vós estais só. Só contra o papa, só contra todos os bispos. Que significa vosso combate?” Pois bem, não, eu não estou sozinho. Tenho toda a tradição comigo, a Igreja existe no tempo e no espaço. E depois, eu sei que muitos bispos pensam como nós em seu foro interior. Hoje, desde a carta aberta ao papa que Dom Castro Mayer assinou comigo, somos dois a nos termos declarado abertamente contra a protestantização da Igreja. Temos muitos padres conosco. E depois há nossos seminários que fornecem atualmente cerca de 40 novos sacerdotes cada ano, nossos 250 seminaristas, nossos 30 irmãos, nossas 60 religiosas, nossos 30 oblatos, os mosteiros e os carmelos que se abrem e se desenvolvem, a multidão dos fiéis que vêm para nós.
A Verdade, aliás, não se realiza no número, o número não faz a Verdade. Mesmo se eu estivesse sozinho, se todos os meus seminaristas me deixassem, mesmo se toda a opinião pública me abandonasse, isto me seria indiferente no que me concerne. Estou ligado a meu credo, a meu catecismo, à tradição que santificou todos os eleitos que estão no céu, quero salvar minha alma. A opinião pública, conhece-se muito bem, foi a que condenou Nosso Senhor alguns dias após tê-lo aclamado. É o domingo de Ramos e depois há a Sexta-feira santa. Sua Santidade Paulo VI me perguntou: ”Mas enfim, no interior de vós mesmo, não sentis alguma coisa que vos reprova o que fizestes? Vós causais na Igreja um escândalo enorme, enorme. Vossa consciência não vo-lo diz? Respondi: Não, Santíssimo Padre, absolutamente. Se eu tivesse alguma coisa a me reprovar, cessaria imediatamente”.
O papa João Paulo II não confirmou nem invalidou a sanção pronunciada contra mim. Por ocasião da audiência que me concedeu em novembro de 1979, ele parecia bastante disposto, após uma conversação prolongada, a deixar a liberdade de escolha na liturgia, a deixar-me fazer, no final de contas, o que eu solicito desde o começo: entre todas as experiências que são efetuadas na Igreja, “a experiência da tradição”.
Parecia ter chegado o momento em que as coisas se iriam arranjar, não mais ostracismo contra a missa, não mais problema. Mas o cardeal Seper, que estava presente, viu o perigo; exclamou: “Mas Santíssimo Padre, eles fazem desta missa uma bandeira!” A pesada cortina que se havia erguido num instante recaiu. Será preciso esperar ainda.

  1. 1. Tridentino: que se refere ao Concílio de Trento.

19 . As sanções romanas contra Ecône


19 . As sanções romanas contra Ecône

Vós sois talvez, leitores perplexos, daqueles que vêem com tristeza e angústia o rumo que tomam as coisas, mas não obstante receiam assistir a uma verdadeira missa, apesar do desejo que experimentam, porque lhes fizeram crer que esta missa estava interditada. Sois talvez daqueles que não mais se dirigem aos padres de blusão mas que consideram com uma certa desconfiança os padres de batina, como se eles estivessem sob o golpe de alguma censura; aquele que os ordenou não é um bispo suspenso a divinis? Tendes medo de colocar-vos fora da Igreja; em princípio este temor é louvável, mas é mal esclarecido. Quero dizer-vos em que consistem as sanções, as quais foram postas em evidência, e com que os franco-maçons e os marxistas se regozijaram ruidosamente. Um curto apanhado histórico se revela necessário para que se compreenda bem.
Quando fui enviado ao Gabão como missionário, meu bispo me nomeou logo professor no seminário de Libreville, onde formei durante seis anos seminaristas, dentre os quais alguns, em seguida, receberam a graça do episcopado. Feito bispo por meu turno, em Dakar, pareceu-me que minha preocupação principal devia ser procurar vocações, formar os jovens que correspondessem ao apelo de Deus e de conduzi-los ao sacerdócio. Tive a alegria de conferir o sacerdócio ao que devia ser meu sucessor em Dakar, Dom Thiandoum e a Dom Dionne, o atual bispo de Thiès, no Senegal.
De volta à Europa para tomar posse do cargo de superior geral dos padres do Espírito Santo, esforcei-me por manter os valores essenciais da formação sacerdotal. Devo confessar que já nessa época, no começo dos anos 60, a pressão era tal, as dificuldades tão consideráveis que eu não pude obter o resultado que desejava; não podia manter o seminário francês de Roma, colocado sob a autoridade de nossa congregação na boa linha que era a sua quando nós mesmos aí estávamos, entre 1920 e 1930. Eu me demiti em 1968 para não avalizar a reforma empreendida pelo capítulo geral num sentido contrário ao da tradição católica. Antes já desta data, eu recebia numerosos apelos, de famílias e de sacerdotes perguntando-me para que lugares de formação dirigir os jovens que desejavam tornar-se padres. Confesso que estava muito hesitante. Exonerado de minhas responsabilidades e quando cogitava em retirar-me, pensei na universidade de Friburgo, na Suíça, ainda orientada e dirigida pela doutrina tomista. O bispo, Dom Charrière me recebeu de braços abertos, aluguei uma casa e acolhemos nove seminaristas que seguiam os cursos na universidade e levavam no resto do tempo, uma verdadeira vida de seminário. Eles muito depressa manifestaram o desejo de continuar, no futuro, a trabalhar juntos e, depois de refletir, fui perguntar a Dom Charrière se ele aceitava assinar um decreto de fundação duma “Fraternidade”. Aprovou os seus estatutos e assim nasceu, a 1° de novembro de 1970, a “Fraternidade Sacerdotal de São Pio X”.
Estávamos erigidos canonicamente na diocese de Friburgo.
Estes pormenores são importantes, vós ireis vê-lo. Um bispo tem o direito, canonicamente, de erigir em sua diocese associações que Roma pelo próprio fato reconhece. A tal ponto que se um bispo, sucessor do primeiro, desejar suprimir esta associação, ele não o pode fazer sem recorrer a Roma. A autoridade romana protege o que fez o primeiro bispo, afim de que as associações não estejam submetidas a uma precariedade que seria nociva ao seu desenvolvimento. Assim o quer o direito da Igreja1.
A Fraternidade sacerdotal de São Pio X é por conseguinte reconhecida por Roma dum modo inteiramente legal, ainda que sendo de direito diocesano, e não de direito pontifício, o que não é indispensável. Existem centenas de congregações religiosas de direito diocesano que têm casas no mundo inteiro.
Quando a Igreja aceita uma fundação, uma associação diocesana, ela aceita que esta forme seus membros, se é uma congregação religiosa, ela aceita que haja um noviciado, uma casa de formação. Para nós são os seminários. A 18 de fevereiro de 1971, o cardeal Wright, prefeito da Congregação do clero, me enviara uma carta de encorajamento em que ele se mostrava tranquilizado de que a Fraternidade ”poderia muito bem concordar com o fim visado pelo concílio neste santo Dicastério em vista da distribuição do clero no mundo”. E não obstante, em novembro de 1972 se falava na assembléia plenária do episcopado francês, em Lourdes, de “seminário selvagem”, sem que nenhum dos bispos presentes, necessariamente a par da situação jurídica do seminário de Ecône, protestasse.
Por que nos consideravam como selvagens? Porque nós não dávamos a chave da casa aos seminaristas para que eles pudessem sair todas as noites a seu gosto, porque não os fazíamos ver a televisão de oito a onze horas, porque não usavam “col roulé” e assistiam à missa todas as manhãs em lugar de ficarem na cama até a primeira aula.
E apesar disso, o cardeal Garrone2, com quem eu me encontrei nesta época, me dizia: “Vós não dependeis diretamente de mim e eu não tenho a dizer-vos senão uma coisa: segui a ratio fundamentalis que eu dei para a fundação dos seminários, que todos os seminários devem seguir.” A ratio fundamentalis prevê que se ensine ainda latim no seminário, que se façam os estudos segundo a doutrina de Santo Tomás. Eu me permiti responder: “Eminência, acredito que somos alguns poucos a segui-la”. É ainda mais verdadeiro hoje e a ratio fundamentalis está ainda em vigor. Portanto, o que é que nos reprova?
Quando foi necessário abrir um verdadeiro seminário e eu aluguei a casa de Ecône, antiga casa de repouso dos monges do grande São Bernardo, fui encontrar dom Adam, bispo de Sion, que me deu seu consentimento. Esta criação não era o resultado dum projeto longínquo que eu tinha formado, ela se me impunha providencialmente. Eu tinha dito: ”se a obra se espalha mundialmente, será o sinal de que Deus está com ela.” De ano para ano o número dos seminaristas crescia: em 1970 havia 11 entradas, em 1974, 40. A inquietude se espalhava entre os inovadores: era evidente que, se nós formávamos seminaristas, era para ordená-los e que os futuros sacerdotes seriam fiéis à missa da Igreja; à missa da tradição à missa de sempre. Não é preciso buscar em outra parte a razão dos ataques aos quais nós estávamos expostos; um perigo para a Igreja neomodernista, importava detê-lo antes que fosse demasiado tarde.
É assim que, a 11 de novembro de 1974, chegavam ao seminário, com as primeiras neves, dois visitadores apostólicos enviados por uma comissão nomeada pelo papa Paulo VI e composta de três cardeais, Garrone, Wright e Tabera, sendo este último prefeito da Congregação dos religiosos. Eles interrogaram 10 professores e 20 dos 104 alunos presentes, assim como a mim mesmo, e regressaram dois dias mais tarde deixando uma desagradável impressão: tinham feito aos seminaristas afirmações escandalosas, julgando normal a ordenação de pessoas casadas, declarando que não admitiam uma verdade imutável e emitindo dúvidas sobre a maneira tradicional de conceber a Ressurreição de Nosso Senhor. Do seminário nada disseram nem deixaram nenhum protocolo. Em consequência disto, indignado com as afirmações feitas, eu publicava uma declaração que começava por estas frases:
“Nós aderimos de todo o coração, de toda a nossa alma à Roma católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias à manutenção desta fé, à Roma eterna, mestra da sabedoria e da verdade.
“Recusamos pelo contrário e sempre temos recusado seguir a Roma de tendência neo-modernista e neo-protestante que se manifestou claramente no concílio Vaticano II e depois do concílio, em todas as reformas dele provenientes.”
Os termos eram sem dúvida um pouco incisivos, mas traduziam e traduzem sempre o meu pensamento. É por causa deste texto que a comissão cardinalícia decidiu abater-nos, pois ela não o podia fazer referindo-se à conduta do seminário: os cardeais dir-me-ão dois meses mais tarde que os visitadores apostólicos tinham recolhido uma boa impressão de sua investigação.
Ela convidou-me, a 13 de fevereiro seguinte, para uma “conversa” em Roma, para esclarecer alguns pontos e eu fui até lá, sem duvidar de que se tratava de uma armadilha. A conversa, desde o início, se tornou um interrogatório cerrado, de tipo judiciário. Ela foi seguida por uma segunda, a 3 de março, e dois meses mais tarde, a comissão me informava “com inteira aprovação de Sua Santidade”, das decisões que havia tomado: Dom Mamie, novo bispo de Friburgo, se via reconhecer o direito de retirar a aprovação dada à Fraternidade por seu predecessor. Pelo próprio fato esta, assim como suas fundações e notadamente o seminário de Ecône, perdia o “direito à existência”.
Sem esperar notificação destas decisões, Dom Mamie me escrevia: Informo-vos pois de que eu retiro os atos e as concessões efetuados por meu predecessor no que respeita à Fraternidade sacerdotal são Pio X, particularmente o decreto de ereção de 1 de novembro de 1970. Esta decisão é imediatamente efetiva.”
Se bem me tendes seguido, podeis verificar que esta supressão foi feita pelo bispo de Friburgo e não pela Santa Sé. Em virtude do cânon 493 é assim uma medida nula de pleno direito por defeito de competência.
A isto se acrescentou um defeito de causa suficiente. A decisão não se pode apoiar senão na minha declaração de 21 de novembro de 1974, julgada pela comissão “em todos os pontos inaceitável”, uma vez que pelos dizeres da dita comissão, os resultados da visita apostólica eram favoráveis. Ora, minha declaração jamais foi objeto duma condenação da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (o antigo Santo Ofício), a única habilitada a julgar se ela está em oposição à fé católica. Ela não foi tida “em todos os pontos inaceitável” a não ser por três cardeais, no decorrer do que ficou considerado oficialmente como uma conversa.
A existência jurídica da própria comissão não foi jamais demonstrada. Por qual ato pontifical foi ela instituída? Em que data? Em que forma foi tomada? A quem foi notificada? O fato de as autoridades romanas se haverem recusado a apresentá-lo, permite duvidar de sua existência. “Na dúvida de direito, a lei não obriga”, diz o Código de direito canônico. Ainda menos quando é a competência e mesmo a existência da autoridade que é duvidosa. Os termos “com a inteira aprovação de Sua Santidade“ são juridicamente insuficientes; eles só poderiam substituir o decreto que deveria ter constituído a comissão cardenalícia e definir seus poderes.
Outras tantas irregularidades de procedimento que tornam nula a suspensão da Fraternidade. Não se deve esquecer ademais que a Igreja não é uma sociedade totalitária de tipo nazista ou marxista, e que o direito, mesmo quando ele é respeitado — o que não é o caso nesta questão — não constitui algo de absoluto. Ele é relativo à verdade, à fé, à vida. O direito canônico é feito para fazer-nos viver espiritualmente e conduzir-nos assim à vida eterna. Se se emprega esta lei para impedir-nos de lá chegar, para fazer abortar de qualquer maneira nossa vida espiritual, estamos obrigados a desobedecer exatamente da mesma sorte que os cidadãos estão obrigados, numa nação, a desobedecer à lei do aborto.
Para permanecer no plano jurídico eu introduzi dois recursos sucessivos junto ao Tribunal apostólico, que é um pouco o equivalente ao Tribunal Supremo de cassação no direito civil. O cardeal secretário de Estado, Mons. Villot, proibiu este tribunal supremo da Igreja de recebê-los, o que corresponde a uma intervenção do executivo no judiciário.

  1. 1. Cânon 493.
  2. 2. Prefeito da Congregação da Educação Católica.