19 . As sanções romanas contra Ecône
Vós sois talvez, leitores perplexos, daqueles que vêem com
tristeza e angústia o rumo que tomam as coisas, mas não obstante receiam
assistir a uma verdadeira missa, apesar do desejo que experimentam, porque lhes
fizeram crer que esta missa estava interditada. Sois talvez daqueles que não
mais se dirigem aos padres de blusão mas que consideram com uma certa
desconfiança os padres de batina, como se eles estivessem sob o golpe de alguma
censura; aquele que os ordenou não é um bispo suspenso a divinis? Tendes
medo de colocar-vos fora da Igreja; em princípio este temor é louvável, mas é
mal esclarecido. Quero dizer-vos em que consistem as sanções, as quais foram
postas em evidência, e com que os franco-maçons e os marxistas se regozijaram
ruidosamente. Um curto apanhado histórico se revela necessário para que se
compreenda bem.
Quando fui enviado ao Gabão como missionário, meu bispo me
nomeou logo professor no seminário de Libreville, onde formei durante seis anos
seminaristas, dentre os quais alguns, em seguida, receberam a graça do
episcopado. Feito bispo por meu turno, em Dakar, pareceu-me que minha
preocupação principal devia ser procurar vocações, formar os jovens que
correspondessem ao apelo de Deus e de conduzi-los ao sacerdócio. Tive a alegria
de conferir o sacerdócio ao que devia ser meu sucessor em Dakar, Dom Thiandoum
e a Dom Dionne, o atual bispo de Thiès, no Senegal.
De volta à Europa para tomar posse do cargo de superior
geral dos padres do Espírito Santo, esforcei-me por manter os valores essenciais
da formação sacerdotal. Devo confessar que já nessa época, no começo dos anos
60, a pressão era tal, as dificuldades tão consideráveis que eu não pude obter
o resultado que desejava; não podia manter o seminário francês de Roma,
colocado sob a autoridade de nossa congregação na boa linha que era a sua
quando nós mesmos aí estávamos, entre 1920 e 1930. Eu me demiti em 1968 para
não avalizar a reforma empreendida pelo capítulo geral num sentido contrário ao
da tradição católica. Antes já desta data, eu recebia numerosos apelos, de
famílias e de sacerdotes perguntando-me para que lugares de formação dirigir os
jovens que desejavam tornar-se padres. Confesso que estava muito hesitante.
Exonerado de minhas responsabilidades e quando cogitava em retirar-me, pensei
na universidade de Friburgo, na Suíça, ainda orientada e dirigida pela doutrina
tomista. O bispo, Dom Charrière me recebeu de braços abertos, aluguei uma casa
e acolhemos nove seminaristas que seguiam os cursos na universidade e levavam
no resto do tempo, uma verdadeira vida de seminário. Eles muito depressa
manifestaram o desejo de continuar, no futuro, a trabalhar juntos e, depois de
refletir, fui perguntar a Dom Charrière se ele aceitava assinar um decreto de
fundação duma “Fraternidade”. Aprovou os seus estatutos e assim nasceu, a 1° de
novembro de 1970, a “Fraternidade Sacerdotal de São Pio X”.
Estávamos erigidos canonicamente na diocese de Friburgo.
Estes pormenores são importantes, vós ireis vê-lo. Um bispo
tem o direito, canonicamente, de erigir em sua diocese associações que Roma
pelo próprio fato reconhece. A tal ponto que se um bispo, sucessor do primeiro,
desejar suprimir esta associação, ele não o pode fazer sem recorrer a Roma. A
autoridade romana protege o que fez o primeiro bispo, afim de que as
associações não estejam submetidas a uma precariedade que seria nociva ao seu
desenvolvimento. Assim o quer o direito da Igreja1.
A Fraternidade sacerdotal de São Pio X é por conseguinte
reconhecida por Roma dum modo inteiramente legal, ainda que sendo de direito
diocesano, e não de direito pontifício, o que não é indispensável. Existem
centenas de congregações religiosas de direito diocesano que têm casas no mundo
inteiro.
Quando a Igreja aceita uma fundação, uma associação
diocesana, ela aceita que esta forme seus membros, se é uma congregação
religiosa, ela aceita que haja um noviciado, uma casa de formação. Para nós são
os seminários. A 18 de fevereiro de 1971, o cardeal Wright, prefeito da
Congregação do clero, me enviara uma carta de encorajamento em que ele se
mostrava tranquilizado de que a Fraternidade ”poderia muito bem concordar com o
fim visado pelo concílio neste santo Dicastério em vista da distribuição do
clero no mundo”. E não obstante, em novembro de 1972 se falava na assembléia
plenária do episcopado francês, em Lourdes, de “seminário selvagem”, sem que
nenhum dos bispos presentes, necessariamente a par da situação jurídica do seminário
de Ecône, protestasse.
Por que nos consideravam como selvagens? Porque nós não
dávamos a chave da casa aos seminaristas para que eles pudessem sair todas as
noites a seu gosto, porque não os fazíamos ver a televisão de oito a onze
horas, porque não usavam “col roulé” e assistiam à missa todas as manhãs em
lugar de ficarem na cama até a primeira aula.
E apesar disso, o cardeal Garrone2, com quem eu me
encontrei nesta época, me dizia: “Vós não dependeis diretamente de mim e eu não
tenho a dizer-vos senão uma coisa: segui a ratio fundamentalis que eu
dei para a fundação dos seminários, que todos os seminários devem seguir.” A ratio
fundamentalis prevê que se ensine ainda latim no seminário, que se façam os
estudos segundo a doutrina de Santo Tomás. Eu me permiti responder: “Eminência,
acredito que somos alguns poucos a segui-la”. É ainda mais verdadeiro hoje e a ratio
fundamentalis está ainda em vigor. Portanto, o que é que nos reprova?
Quando foi necessário abrir um verdadeiro seminário e eu
aluguei a casa de Ecône, antiga casa de repouso dos monges do grande São
Bernardo, fui encontrar dom Adam, bispo de Sion, que me deu seu consentimento.
Esta criação não era o resultado dum projeto longínquo que eu tinha formado,
ela se me impunha providencialmente. Eu tinha dito: ”se a obra se espalha
mundialmente, será o sinal de que Deus está com ela.” De ano para ano o número
dos seminaristas crescia: em 1970 havia 11 entradas, em 1974, 40. A inquietude
se espalhava entre os inovadores: era evidente que, se nós formávamos
seminaristas, era para ordená-los e que os futuros sacerdotes seriam fiéis à
missa da Igreja; à missa da tradição à missa de sempre. Não é preciso buscar em
outra parte a razão dos ataques aos quais nós estávamos expostos; um perigo
para a Igreja neomodernista, importava detê-lo antes que fosse demasiado tarde.
É assim que, a 11 de novembro de 1974, chegavam ao seminário,
com as primeiras neves, dois visitadores apostólicos enviados por uma comissão
nomeada pelo papa Paulo VI e composta de três cardeais, Garrone, Wright e
Tabera, sendo este último prefeito da Congregação dos religiosos. Eles
interrogaram 10 professores e 20 dos 104 alunos presentes, assim como a mim
mesmo, e regressaram dois dias mais tarde deixando uma desagradável impressão:
tinham feito aos seminaristas afirmações escandalosas, julgando normal a
ordenação de pessoas casadas, declarando que não admitiam uma verdade imutável
e emitindo dúvidas sobre a maneira tradicional de conceber a Ressurreição de
Nosso Senhor. Do seminário nada disseram nem deixaram nenhum protocolo. Em
consequência disto, indignado com as afirmações feitas, eu publicava uma declaração
que começava por estas frases:
“Nós aderimos de todo o coração, de toda a nossa alma à Roma
católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias à manutenção desta
fé, à Roma eterna, mestra da sabedoria e da verdade.
“Recusamos pelo contrário e sempre temos recusado seguir a
Roma de tendência neo-modernista e neo-protestante que se manifestou claramente
no concílio Vaticano II e depois do concílio, em todas as reformas dele
provenientes.”
Os termos eram sem dúvida um pouco incisivos, mas traduziam
e traduzem sempre o meu pensamento. É por causa deste texto que a comissão
cardinalícia decidiu abater-nos, pois ela não o podia fazer referindo-se à
conduta do seminário: os cardeais dir-me-ão dois meses mais tarde que os
visitadores apostólicos tinham recolhido uma boa impressão de sua investigação.
Ela convidou-me, a 13 de fevereiro seguinte, para uma
“conversa” em Roma, para esclarecer alguns pontos e eu fui até lá, sem duvidar
de que se tratava de uma armadilha. A conversa, desde o início, se tornou um
interrogatório cerrado, de tipo judiciário. Ela foi seguida por uma segunda, a
3 de março, e dois meses mais tarde, a comissão me informava “com inteira
aprovação de Sua Santidade”, das decisões que havia tomado: Dom Mamie, novo
bispo de Friburgo, se via reconhecer o direito de retirar a aprovação dada à
Fraternidade por seu predecessor. Pelo próprio fato esta, assim como suas
fundações e notadamente o seminário de Ecône, perdia o “direito à existência”.
Sem esperar notificação destas decisões, Dom Mamie me
escrevia: Informo-vos pois de que eu retiro os atos e as concessões efetuados
por meu predecessor no que respeita à Fraternidade sacerdotal são Pio X,
particularmente o decreto de ereção de 1 de novembro de 1970. Esta decisão é
imediatamente efetiva.”
Se bem me tendes seguido, podeis verificar que esta
supressão foi feita pelo bispo de Friburgo e não pela Santa Sé. Em virtude do
cânon 493 é assim uma medida nula de pleno direito por defeito de competência.
A isto se acrescentou um defeito de causa suficiente. A
decisão não se pode apoiar senão na minha declaração de 21 de novembro de 1974,
julgada pela comissão “em todos os pontos inaceitável”, uma vez que pelos
dizeres da dita comissão, os resultados da visita apostólica eram favoráveis.
Ora, minha declaração jamais foi objeto duma condenação da Sagrada Congregação
para a Doutrina da Fé (o antigo Santo Ofício), a única habilitada a julgar se
ela está em oposição à fé católica. Ela não foi tida “em todos os pontos
inaceitável” a não ser por três cardeais, no decorrer do que ficou considerado
oficialmente como uma conversa.
A existência jurídica da própria comissão não foi jamais
demonstrada. Por qual ato pontifical foi ela instituída? Em que data? Em que
forma foi tomada? A quem foi notificada? O fato de as autoridades romanas se
haverem recusado a apresentá-lo, permite duvidar de sua existência. “Na dúvida
de direito, a lei não obriga”, diz o Código de direito canônico. Ainda menos
quando é a competência e mesmo a existência da autoridade que é duvidosa. Os
termos “com a inteira aprovação de Sua Santidade“ são juridicamente
insuficientes; eles só poderiam substituir o decreto que deveria ter
constituído a comissão cardenalícia e definir seus poderes.
Outras tantas irregularidades de procedimento que tornam
nula a suspensão da Fraternidade. Não se deve esquecer ademais que a Igreja não
é uma sociedade totalitária de tipo nazista ou marxista, e que o direito, mesmo
quando ele é respeitado — o que não é o caso nesta questão — não constitui algo
de absoluto. Ele é relativo à verdade, à fé, à vida. O direito canônico é feito
para fazer-nos viver espiritualmente e conduzir-nos assim à vida eterna. Se se
emprega esta lei para impedir-nos de lá chegar, para fazer abortar de qualquer
maneira nossa vida espiritual, estamos obrigados a desobedecer exatamente da
mesma sorte que os cidadãos estão obrigados, numa nação, a desobedecer à lei do
aborto.
Para permanecer no plano jurídico eu introduzi dois recursos
sucessivos junto ao Tribunal apostólico, que é um pouco o equivalente ao
Tribunal Supremo de cassação no direito civil. O cardeal secretário de Estado,
Mons. Villot, proibiu este tribunal supremo da Igreja de recebê-los, o que
corresponde a uma intervenção do executivo no judiciário.