13 . Liberdade religiosa, Igualdade colegial, Fraternidade
ecumênica
Mas donde provém então que as portas do inferno dirijam
neste momento uma tal sarabanda? A história da Igreja foi sempre agitada por
perseguições, heresias, conflitos com o poder temporal, pela conduta licenciosa
em certas épocas, duma parte do clero, mesmo de alguns papas. Desta vez a crise
parece mais profunda, uma vez que atinge a própria fé. O modernismo contra o
qual nos chocamos não é uma heresia do mesmo tipo que qualquer outra, mas a
cloaca coletora de todas as heresias; as perseguições não provêm somente do
exterior, mas do interior do santuário; o escândalo de um clero demissionário
ou dissoluto pretende institucionalizar-se, os mercenários que abandonam as
ovelhas ao lobo são encorajados e cobertos de honras.
Reprovam-me por vezes o fato de eu denegrir a situação, de
lançar um olhar reprovador, por não sei que complacência rabugenta, sobre uma
evolução em resumo lógica e necessária. Mas o próprio papa, que foi a alma do
Vaticano II, verificou muitas vezes seguidas a decomposição da qual falo com
tristeza. A 7 de dezembro de 1969, Paulo VI dizia: “A Igreja se encontra numa
hora de inquietude, de autocrítica, dir-se-ia mesmo, de autodestruição. É como
uma reviravolta interior, aguda e complexa. Como se a Igreja se golpeasse a si
própria.”
No ano seguinte ele confessava: “Em numerosos domínios, o
concílio não nos deu até o presente a tranquilidade mas antes suscitou
perturbações e problemas não úteis à consolidação do Reino de Deus na Igreja e
nas almas.”
Até este grito de alarme do dia 29 de junho de 1972, na
festa de são Pedro e são Paulo: ”A fumaça de Satanás entrou por alguma brecha
no templo de Deus: a dúvida, a incerteza, a problemática, a inquietude, a
insatisfação, o desafio abriram caminho... A dúvida entrou nas nossas
consciências.”
Qual é esta brecha? Podemos situar no tempo, com certeza, o
momento em que ela se produziu: 1789 e lhe dar um nome: a Revolução.
Os princípios maçônicos e anticatólicos da Revolução francesa
levaram dois séculos para penetrar nas cabeças clericais e nas cabeças
mitradas. É hoje um fato consumado, tal é a realidade, e a causa, católicos
inquietos, de vossas perplexidades. Foi preciso que os fatos estivessem diante
dos nossos olhos para que nós acreditássemos, pois a priori julgaríamos esta
empresa impossível, incompatível com a própria natureza da Igreja ajudada pelo
Espírito de Deus.
Numa página famosa, escrita em 1877, Mons. Gaume fazia a
própria revolução definir-se: “Eu não sou o que se acredita. Não sou nem o
carbonarismo, nem o tumulto, nem a troca da monarquia pela república, nem a
substituição de uma dinastia por outra, nem a perturbação momentânea da ordem
pública. Eu não sou nem os uivos dos Jacobinos nem os furores da Montanha, nem
o combate das barricadas nem a pilhagem, nem o incêndio, nem a lei agrária, nem
a guilhotina, nem os afogamentos. Não sou nem Marat nem Robespierre, nem Babeuf
nem Mazzini nem Kossuth. Estes homens são meus filhos, não são eu. Estas coisas
são minhas obras, não são eu. Estes homens e estas coisas são fatos passageiros
e eu sou um estado permanente... Sou o ódio de toda a ordem que o homem não
estabeleceu e na qual ele não é rei e Deus ao mesmo tempo.”
Tem-se aqui a chave da vontade da “mudança” na Igreja;
trata-se de substituir uma instituição divina por uma instituição feita pela
mão do homem. E o homem toma a dianteira de Deus. Ele invade tudo, tudo começa
e termina nele, é diante dele que se prosterna.
Paulo VI definia esta reviravolta da maneira seguinte em seu
discurso de encerramento do concílio: “O humanismo leigo e profano apareceu
enfim em sua terrível estatura e, num certo sentido, desafiou o concílio. A
religião de Deus que se fez homem se encontrou com a religião (pois é uma
religião) do homem que se faz Deus.” Ele acrescentava logo que, apesar deste
terrível desafio, não se havia dado nenhum choque, nenhum anátema. Ai! Dando
mostras duma “simpatia sem limites pelos homens” o concílio faltou ao dever de
lembrar dum modo firme que não há compromisso possível entre as duas atitudes e
mesmo o discurso de encerramento pareceu dar início àquilo que vemos pôr em
prática cada dia. “Reconhecei-lhe ao menos este mérito (ao concílio), vós
humanistas modernos que renunciais à transcendência das coisas supremas, e
sabei reconhecer nosso novo humanismo, nós também, nós mais do que qualquer
outro, temos o culto do homem.”
Depois ouvimos da mesma boca frases a desenvolverem este
tema: ”Os homens, no fundo, são bons, são orientados para a razão, para a ordem
e o bem comum” (Mensagem para a Jornada da Paz, 14 de novembro de 1970). “O
cristianismo e a democracia têm em comum um princípio de base: o respeito pela
dignidade e pelo valor da pessoa humana... A promoção integral do homem”
(Manilha, 20 de novembro de 1970). Como não estar aterrado por este paralelo,
enquanto que a democracia, sistema especificamente leigo, ignora no homem sua
qualidade de filho de Deus resgatado, único aspecto que lhe confere sua
dignidade? A promoção do homem não é certamente a mesma, vista por um cristão
ou por um descrente.
A mensagem pontifical se secularizava a cada ocasião. Em
Sydney, a 3 de dezembro de 1970, ouvíamos com surpresa esta afirmação: ”Não há
mais isolamento permitido: é chegada a hora da grande solidariedade dos homens
entre si, para o estabelecimento duma comunidade mundial unida e fraterna.” A
paz entre todos os homens certamente, mas os católicos não reconheciam mais as
palavras de Cristo: “Eu vos dou a minha paz; mas não vo-la dou como a dá o
mundo.” O liame que unia a terra ao céu parecia ter-se rompido: “Pois bem, nós
estamos na democracia! Isto quer dizer que o povo manda, que o poder provém do
número, da população tal como é.” (Paulo VI, 1 de janeiro de 1970). Jesus tinha
dito a Pilatos: “Não terias nenhum poder sobre mim se te não fosse dado do
alto.” Todo o poder vem de Deus e não do número, mesmo se a escolha do chefe
tenha sido feita por um sistema eletivo. Pilatos era o representante duma nação
pagã e não obstante nada podia sem a permissão do Pai do céu.
E eis que a democracia entra na Igreja. O novo direito
canônico mostra os poderes residindo no “Povo de Deus”. Esta tendência a fazer
participar o que se chama base do exercício do poder se encontra em todas as
estruturas estabelecidas: sínodo, conferências episcopais, conselhos
presbiterais ou pastorais, comissões nacionais; há instituições equivalentes
nas ordens religiosas.
É a democratização do magistério, perigo mortal para milhões
de almas desamparadas e intoxicadas as quais os médicos não socorrem, pois ela
arruinou a eficácia de que era provido precedentemente o magistério pessoal dos
papas e dos bispos. Quando se põe uma questão concernente à fé ou à moral, ela
é submetida a múltiplas comissões teológicas que não chegam a pronunciar-se a
respeito, porque os membros estão divididos em suas opiniões, em seus métodos.
Basta ler os relatos das assembléias em todos os escalões para reconhecer que a
colegialidade do magistério equivale à paralisia do mesmo.
Foi a pessoas que Nosso Senhor mandou apascentar seu
rebanho, não a uma coletividade; os Apóstolos obedeceram às ordens do Mestre e
até o século XX foi assim. Foi preciso chegar ao nosso tempo para ouvir falar
da Igreja em estado de concílio permanente, de Igreja em contínua colegialidade.
Os resultados não se fizeram esperar: tudo está de pernas para o ar, os fiéis
não sabem a quem se dirigir.
À democratização do magistério segue-se naturalmente a
democratização do governo que se realizou sob o impulso do famoso slogan da
“colegialidade”, difundida a todos os ventos pela imprensa comunista,
protestante e progressista.
Colegializou-se o governo do papa ou o dos bispos com um
colégio presbiteral, ou do padre de paróquia com um conselho pastoral de
leigos, tudo articulado em inumeráveis comissões, conselhos, sessões, etc. O
novo Código de Direito Canônico está todo impregnado desta noção. O papa é nele
definido antes de tudo como o chefe do colégio episcopal. Encontra-se aí a
doutrina já sugerida pelo documento Lumen Gentium do concílio, segundo a
qual o colégio dos bispos unido ao papa, goza como ele do poder supremo na Igreja,
e isto dum modo habitual e constante.
Não é uma modificação superficial; esta doutrina do duplo
poder supremo é contrária ao ensino e a prática do magistério da Igreja. Ela se
opõe às definições do Concílio Vaticano I e a encíclica de Leão XIII Satis
Cognitum. Somente o papa tem o poder supremo; ele não o comunica senão na
medida em que julga oportuno, e em circunstâncias extraordinárias. Só o papa
tem um poder de jurisdição que se estende ao mundo inteiro.
Assiste-se assim a uma restrição da liberdade do poder do
Soberano Pontífice. Sim, é a revolução! Os fatos demonstram que não temos aí
uma modificação sem alcance prático, João Paulo II é o primeiro papa
verdadeiramente atingido pela reforma. Podem-se citar vários casos precisos em
que ele voltou atrás numa decisão sob a pressão duma conferência episcopal, o
catecismo holandês terminou por receber o “imprimatur” do arcebispo de Milão
sem que as modificações exigidas pela comissão cardinalícia tivessem sido
feitas. Aconteceu o mesmo com o catecismo canadense, a propósito do qual eu
ouvi uma voz autorizada dizer em Roma: “Que quereis que se faça diante duma
conferência episcopal?”.
A independência tomada pelas conferências foi ilustrada
também na França a respeito dos catecismos. Os novos manuais estão em oposição
em quase todos os pontos à exortação apostólica Catechesi Tradendae. A
visita ad limina dos bispos de Île de France, em 1982, consistiu para
eles em fazer homologar pelo papa uma catequese que manifestamente não tem sua
aprovação. A alocução pronunciada no fim da visita por João Paulo II tem todas
as características dum compromisso, graças ao qual os bispos poderiam regressar
de cabeça erguida a seu país e perseverar em sua empresa nefasta. A conferência
do cardeal Ratzinger, em Paris e em Lyon, indica bem que Roma não aquiesceu às
razões dadas pelos bispos da França para instaurar uma nova pedagogia e uma
nova doutrina, mas que a Santa Sé foi constrangida a proceder assim por
pressões desta sorte, por sugestões e conselhos, em lugar de dar as ordens
requeridas para recolocar as coisas no bom caminho e condenar, se for preciso,
como sempre fizeram os papas guardiães do depósito da fé.
Quanto ao bispo, cuja jurisdição pareceria assim ter
aumentado, ele próprio é vítima da colegialidade, que o paralisa no governo de
sua diocese.
Quantas reflexões foram feitas pelos próprios bispos a este
respeito e como são instrutivas. Teoricamente pode o bispo, em numerosos casos,
agir contra o voto da assembléia, por vezes mesmo contra uma maioria, se o voto
não foi submetido à Santa Sé; mas na prática isto se revela impossível. Após o
fim da assembléia, as decisões são publicadas pelo secretário. Elas são
conhecidas por todos os padres e fiéis, os intermediários veiculam o essencial.
Que bispo poderá opor-se de fato a estas decisões sem demonstrar seu desacordo
com a assembléia e encontrar imediatamente diante de si alguns espíritos
revolucionários que apelarão para a assembléia contra ele
O bispo é o prisioneiro da colegialidade, que se deveria
limitar a ser um organismo de consulta, de reunião, mas não se tornar um órgão
de decisão. Mesmo para as coisas mais simples ele deixou de ser o chefe em sua
casa. Pouco depois do concílio, como eu visitava nossas comunidades, o bispo
duma diocese do Brasil veio buscar-me muito cortesmente na plataforma da
estação.
— Eu não posso hospedar-vos no palácio episcopal, disse-me,
mas mandei preparar-vos um alojamento no seminário menor.
Ele próprio me conduziu até lá, a casa estava em
efervescência, eu via por toda parte, nos corredores e nas escadas, moços e
moças.
— Estes jovens são seminaristas? perguntei.
— Infelizmente não! Acreditai bem que não estou de acordo
com a presença de todos estes jovens no meu seminário, mas é a conferência
episcopal que decidiu que devíamos doravante fazer sessões de ação católica em
nossos estabelecimentos. Estes que vedes estão aqui por oito dias. Que quereis
que eu faça? Não posso proceder diferentemente dos outros!
Os poderes conferidos por direito divino a pessoas foram assim
confiscados, quer se trate do papa quer dos bispos, em proveito duma entidade
cuja influência não fez senão reforçar-se.
As conferências episcopais, dir-se-á, não datam de hoje; Pio
X já as havia aprovado no começo do século. É exato, mas este santo papa lhes
havia dado uma definição que as justificava: ”Estamos persuadidos de que estas
assembléias de bispos são da maior importância para manter e desenvolver o
reino de Deus em todas as regiões e em todos os domínios. Quando os bispos
guardiães das coisas santas, põem assim em comum suas luzes, resulta que não
somente percebem melhor as necessidades de seus povos e escolhem os remédios
mais convenientes, mas ainda estreitam os vínculos que os uniam entre si.”
Não se tratava, por conseguinte, duma instituição de caráter
oficial, tomando, como tal, decisões aplicáveis obrigatoriamente por seus
membros. Tanto como um congresso de sábios não fixa a maneira pela qual as
pesquisas deverão ser conduzidas num tal ou tal laboratório.
A conferência episcopal funciona como um Parlamento, o
conselho permanente do episcopado francês é o seu órgão executivo. O bispo se
assemelha mais a um prefeito, a um comissário da República, para empregar a
terminologia na moda, do que ao sucessor dos Apóstolos encarregado pelo papa de
governar uma diocese.
Nestas assembléias, se vota; os escrutínios são mesmo tão
numerosos que foi preciso instalar em Lourdes um sistema de voto eletrônico.
Segue-se necessariamente a formação de partidos, pois as duas coisas não
acontecem uma sem a outra. Quem diz partidos, diz divisões. Quando o governo
habitual é submetido a votos consultivos no seu exercício normal ele se torna
ineficaz. É então a coletividade que sofre com isto.
A introdução do colegialismo acarretou um enfraquecimento considerável
de sua eficácia uma vez que o Espírito Santo é mais facilmente contrariado e
contristado numa assembléia que numa pessoa. Quando as pessoas são
responsáveis, elas agem, falam, mesmo se algumas se calam. Na assembléia, é o
número que decide.
Mas o número não faz a verdade.
Ele não causa também a eficácia, como se verifica após vinte
anos de colegialismo, e como se teria podido pressupor sem fazer a experiência;
o fabulista falava, há já muito tempo, dos “muitos cabidos que se reuniram para
nada”. Haveria necessidade de copiar os regimes políticos em que o sufrágio
justifica as decisões, dado que eles não têm mais chefes soberanos? A Igreja
possui a imensa vantagem de saber o que deve fazer para difundir o reino de
Deus. Seus chefes são instituídos. Quanto tempo perdido em elaborar declarações
comuns, que jamais satisfazem porque foi necessário ter em conta pareceres de
uns e de outros! Quantas viagens incessantes para se dirigirem a comissões, e
subcomissões, a reuniões preparatórias! Dom Etchegaray dizia em Lourdes, no
encerramento da assembléia de 1978: ”Nós não sabemos mais onde pôr a cabeça.”
Daí resulta que o poder de resistência da Igreja ao
comunismo, à heresia, à imoralidade, diminui consideravelmente. É o que seus
adversários desejavam e é porque eles tanto fizeram, no momento do concílio e
desde então, para impelir a Igreja pelo caminho da democracia.
Se se observa bem, é com sua divisa que a Revolução penetrou
na Igreja de Deus. A liberdade, é a liberdade religiosa tal como foi dito mais
acima, a qual dá direito ao erro. A igualdade, é a colegialidade, com a
destruição da autoridade pessoal, da autoridade de Deus, do Papa, dos bispos, a
lei do número. A fraternidade enfim é representada pelo ecumenismo.
Por estas três palavras, a ideologia revolucionária de 1789
tornou-se a Lei e os Profetas. Os modernistas chegaram ao que queriam.