Carta Aberta aos Católicos Perplexos


Carta Aberta aos Católicos Perplexos
    S. E. R. Mons. Marcel Lefebvre

22 . As famílias devem reagir


22 . As famílias devem reagir

É o tempo apropriado de reagir. Quando Gaudium et Spes fala do movimento da história que “se torna tão rápido que cada um tem dificuldade de o seguir”, pode-se entender este movimento como uma precipitação das sociedades liberais na desagregação e no caos. Acautelemo-nos de o seguir!
Como compreender que dirigentes apelem para a religião cristã ao passo que destroem toda a autoridade no Estado? Importa ao contrário restabelecê-la, que foi querida pela Providência nas sociedades naturais de direito divino cuja influência neste mundo é primordial: a família e a sociedade civil. É a família que recebeu nestes últimos tempos os mais rudes golpes; a passagem para o socialismo em países como a França e a Espanha não fez senão acelerar o processo.
As leis e medidas que se sucederam mostram uma grande coesão na vontade de arruinar a instituição familiar: diminuição da autoridade paterna, divórcio facilitado, desaparecimento da responsabilidade no ato da procriação, reconhecimento administrativo dos casais irregulares e mesmo de duplas homossexuais, coabitação juvenil, casamento de experiência, diminuição das ajudas sociais e fiscais às famílias numerosas... O mesmo Estado, em seus interesses próprios, começa a perceber as consequências disto no que toca à diminuição da natalidade, ele se pergunta como, num tempo próximo, as jovens gerações poderão assegurar os regimes de retração daquelas que deixaram de ser economicamente ativas. Mas os efeitos são consideravelmente mais graves no domínio espiritual.
Os católicos não devem seguir mas ponderar com todo o seu peso, uma vez que são também cidadãos, para endireitar tudo o que for preciso. É por isso que eles não poderiam ficar à margem da política. Portanto seu esforço será sobretudo sensível na educação que proporcionam a seus filhos.
Sobre este assunto, a autoridade é contestada nas suas próprias fontes por aqueles que declaram que “os pais não são os proprietários dos filhos”, querendo dizer com isto que a educação destes cabe ao Estado, com suas escolas leigas, suas creches, suas maternais. Censuram-se os pais de não respeitar a “liberdade de consciência” de seus filhos quando os educam segundo suas próprias convicções religiosas.
Estas idéias remontam aos filósofos ingleses do século XVII que não queriam ver nos homens senão indivíduos isolados, independentes de nascimento, iguais entre si, subtraídos a toda autoridade. Nós sabemos que isto é falso. A criança recebe tudo de seu pai e de sua mãe, alimento corporal, intelectual, educação moral, social. Eles se fazem ajudar por professores que partilharão, no espírito dos jovens, a sua autoridade mas, seja por meio de uns ou por meio de outros, a quase totalidade da ciência adquirida no decurso da adolescência pessoal será mais uma ciência apreendida, recebida, aceita, do que uma ciência deduzida da observação e da experiência pessoal. Os conhecimentos vêm por uma parte considerável da autoridade que transmite. O jovem estudante acredita em seus pais, em seus professores, em seus livros e assim seu saber se estende.
Isto é ainda mais verdadeiro com os conhecimentos religiosos, com a prática da religião, com o exercício da moral conforme à fé, às tradições, aos costumes. Os homens em geral vivem em função das tradições familiares, isto se observa em toda a superfície do globo. A conversão a uma outra religião do que aquela que se recebeu durante a sua infância encontra sérios obstáculos.
Esta extraordinária influência da família e do meio é querida por Deus. Ele quis que seus benefícios se transmitissem em primeiro lugar através da família; é por esta razão que concedeu ao pai de família uma grande autoridade, um imenso poder sobre a sociedade familiar, sobre sua esposa, sobre seus filhos. A criança nasce numa fraqueza tão grande que se pode julgar da necessidade absoluta da permanência do lar, de sua indissolubilidade.
Querer exaltar a personalidade e a consciência da criança em detrimento da autoridade familiar, é fazer a sua desgraça, impeli-la à revolta, ao desprezo dos pais, enquanto que a longevidade é prometida àqueles que honrarem os seus. São Paulo, ao relembrá-lo, estabelece também um dever aos pais de não exasperarem os filhos, mas de educá-los na disciplina e no temor do Senhor.
Se fosse preciso esperar ter a inteligência da verdade religiosa para crer e converter-se, não haveria senão bem poucos cristãos atualmente. Crê-se nas verdades religiosas porque as testemunhas são dignas de credibilidade por sua santidade, seu desinteresse, sua caridade. Pois, como diz Santo Agostinho, a fé dá inteligência.
A função dos pais tornou-se muito difícil. Nós o vimos, a maioria das escolas livres foram laicizadas de fato, e nelas não se ensina mais a verdadeira religião nem as ciências profanas a luz da fé. Os catecismos difundem o modernismo. A vida trepidante é devoradora de tempo, as necessidades profissionais distanciam pais e filhos dos avôs e avós que participavam outrora da educação. Os católicos não estão apenas perplexos mas desarmados.
Mas isto absolutamente não a ponto de não poderem assegurar o essencial, suprindo a graça de Deus o resto. O que é preciso fazer? Existem escolas verdadeiramente católicas, se bem que em número reduzido. Enviai para lá vossos filhos, mesmo se isto pesar no vosso orçamento. Abri novas, como alguns já o fizeram. Se não podeis frequentar senão escolas onde o ensino é desnaturado, manifestai-vos, reclamai, não deixeis os educadores fazer vossos filhos perder a fé.
Lede, relede em família o catecismo de Trento, o mais belo, o mais perfeito e o mais completo. Organizai “catecismos paralelos” sob a direção espiritual de bons sacerdotes, não tenhais medo de ser tratados, como nós, de “selvagens”. Aliás, numerosos grupos já funcionam que acolherão vossos filhos.
Rejeitai os livros que veiculam o veneno modernista. Fazei-vos aconselhar. Editores corajosos difundem excelentes obras e reimprimem as que os progressistas destruíram. Não adquirais qualquer Bíblia; toda família cristã deveria possuir a Vulgata, tradução latina feita por são Jerônimo no século IV e canonizada pela Igreja1. Atende-vos à verdadeira interpretação das Escrituras, conservai a verdadeira missa e os sacramentos tais como eram administrados por toda a parte até bem pouco.
Atualmente o demônio desencadeou-se contra a Igreja, pois é bem disso que se trata: nós assistimos talvez a uma de suas últimas batalhas, uma batalha geral. Ele ataca em todas as frentes e se Nossa Senhora de Fátima disse que um dia ele subiria até as mais altas esferas da Igreja, é que isto podia acontecer. Nada afirmo de mim mesmo, entretanto há sinais que podem fazer-nos pensar que, nos mais elevados organismos romanos, pessoas perderam a fé.
Devem-se tomar medidas espirituais urgentes. É preciso rezar, fazer penitência, como a Santíssima Virgem o pediu, recitar o terço em família. As pessoas, viu-se em cada guerra, se põem a rezar quando as bombas começam a cair. Mas precisamente, elas caem neste momento: estamos a ponto de perder a fé. Compreendeis que isto ultrapassa em gravidade todas as catástrofes que os homens temem, as crises econômicas mundiais ou os conflitos atômicos?
Renovações se impõem, mas não creiais que não possamos contar para isto com a juventude. Não é toda a juventude que está corrompida, como se tenta persuadir-nos. Muitos têm um ideal, a muitos outros basta propor um. Abundam os exemplos de movimentos que fazem apelo com sucesso à generosidade: os mosteiros fiéis à tradição os atraem, não faltam vocações de jovens seminaristas ou de noviços que pedem formação. Há um magnífico trabalho a realizar conforme as instruções dadas pelos Apóstolos: Tenete traditiones... Permanete in iis quae didicistis.
O velho mundo chamado a desaparecer é o do aborto. As famílias fiéis à tradição são ao mesmo tempo famílias numerosas, sua própria fé lhes assegura a posteridade. “Crescei e multiplicai-vos!” Conservando o que a Igreja sempre ensinou, vós vos ligais ao futuro.

  1. 1. As traduções francesas da Vulgata são, infelizmente, difíceis de encontrar. Pode-se referir quer à antiga edição de “Crampon”, quer, para o Novo Testamento, à edição feita por Dominique Martin Morin.

21 . Nem herege nem cismático


21 . Nem herege nem cismático

A declaração de 21 de novembro de 1974 que desencadeou o processo do qual eu acabo de falar, terminava por estas palavras: ”Agindo assim... nós estamos convencidos de permanecer fiéis à Igreja Católica e romana, a todos os sucessores de Pedro, e de ser os fiéis dispensadores dos mistérios de Nosso Senhor Jesus Cristo.” O “Osservatore Romano”, publicando o texto, omitiu este parágrafo. Há dez anos e mais, nossos adversários estão interessados em rejeitar-nos da comunhão da Igreja deixando entender que não aceitamos a autoridade do papa. Seria bem cômodo fazer de nós uma seita e declarar-nos cismáticos. Quantas vezes a palavra cisma foi pronunciada a nosso respeito!
Não cessei de repetir: se alguém se separa do papa, este alguém não serei eu. A questão se resume nisto: o poder do papa na Igreja é um poder supremo, mas não absoluto e ilimitado, pois está submetido ao poder divino, que se exprime na tradição, na Sagrada Escritura e nas definições já promulgadas pelo magistério eclesiástico. De fato este poder encontra seus limites no fim para o qual ele foi dado sobre a terra ao Vigário de Cristo, fim que Pio IX definiu claramente na Constituição Pastor aeternus do concílio Vaticano I. Não exprimo, pois, uma teoria pessoal ao dizê-lo.
A obediência cega não é católica; ninguém esta isento da responsabilidade por ter obedecido aos homens mais que a Deus, aceitando ordens duma autoridade superior, seja ela do papa, se se revelam contrárias à vontade de Deus tal como a tradição no-la faz conhecer com certeza. Não se poderia considerar uma tal eventualidade, certamente, quando o papa compromete sua infalibilidade, mas ele não o faz senão num número reduzido de casos. É um erro pensar que toda a palavra saída da boca do papa é infalível.
Dito isto, eu não sou daqueles que insinuam ou afirmam que Paulo VI era herege e que, pelo próprio fato de sua heresia, não era mais papa. Em consequência disto, a maior parte dos cardeais nomeados por ele não seriam cardeais e não teriam validamente eleito um outro papa. João Paulo I e João Paulo II por isso não teriam sido eleitos legitimamente. Eis a posição daqueles que se intitulam sede-vacantistas.
É preciso reconhecer que o papa Paulo VI colocou um sério problema para a consciência dos católicos. Este pontífice causou mais danos à Igreja do que a Revolução de 1789. Fatos precisos como as assinaturas apostas ao artigo 7 da “Institutio Generalis” assim como ao documento sobre a liberdade religiosa, são escandalosos. Mas o problema não é tão simples de saber se um papa pode ser herege. Bom número de teólogos pensam que ele o pode ser como doutor particular, não como doutor da Igreja universal. Seria preciso portanto examinar em que medida Paulo VI quis comprometer sua infalibilidade em casos como aqueles que acabo de citar.
Ora, nós pudemos ver que ele agiu muito mais como liberal do que se atendo à heresia. Com efeito, desde que se lhe fazia notar o perigo que corria, tornava o texto contraditório acrescentando uma fórmula oposta ao que era afirmado na redação: conhece-se o exemplo famoso da nota explicativa preliminar inserida em seguida à constituição Lumen Gentium sobre a colegialidade. Realmente ele redigia uma fórmula equívoca, o que é próprio do liberal, por natureza incoerente.
O liberalismo de Paulo VI, reconhecido por seu amigo o cardeal Danielou, basta para explicar os desastres de seu pontificado. O católico liberal é uma pessoa de duplo aspecto, em contínua contradição. Ele quer permanecer católico mas é possuído pela sede de agradar ao mundo. Um papa pode ser liberal e continuar papa? A Igreja sempre censurou severamente os católicos liberais mas nunca os excomungou. Os sedevacantistas adiantam um outro argumento: o afastamento dos cardeais de mais de 80 anos e os conventículos que prepararam os dois últimos conclaves não tornam inválida a eleição destes papas? Inválida é afirmar demais, mas eventualmente duvidosa. Todavia a aceitação posterior e unânime do fato por parte dos cardeais e do clero romano basta para tornar válida a eleição. Tal é a opinião dos teólogos.
O raciocínio daqueles que afirmam a inexistência do papa coloca a Igreja numa situação inextricável. A questão da visibilidade da Igreja é por demais necessária à sua existência para que Deus possa omiti-la durante decênios. Quem nos dirá onde está o futuro papa? Como se poderá designá-lo, se não há mais cardeais? Vemos aí um espírito cismático. Nossa Fraternidade se recusa absolutamente a entrar em semelhantes raciocínios. Nós queremos continuar ligados a Roma, ao sucessor de Pedro, recusando porém o liberalismo de Paulo VI, por fidelidade a seus predecessores.
É claro que em casos como a liberdade religiosa, a hospitalidade eucarística autorizada pelo novo direito canônico ou a colegialidade concebida como a afirmação de dois poderes supremos na Igreja, é um dever para todo clérigo e fiel católico resistir e recusar a obediência. Esta resistência deve ser pública, se o mal é público e representa um objeto de escândalo para as almas. É por isso que, referindo-nos a Santo Tomás de Aquino, Dom Castro Mayer e eu enviamos a 21 de novembro de 1983, uma carta aberta ao papa João Paulo II para suplicar-lhe que denunciasse as causas principais da situação dramática na qual se debate a Igreja. Todas as diligências que fizemos em particular durante quinze anos foram em vão e calar-nos parecer-nos-ia fazer de nós cúmplices da confusão das almas no mundo inteiro.
“Santíssimo Padre, escrevíamos, é urgente que esse mal estar cesse logo, porque o rebanho se dispersa e as ovelhas abandonadas estão seguindo mercenários. Nós vos conjuramos, pelo bem da fé católica e da salvação das almas, a reafirmar as verdades contrárias a estes erros. Nosso grito de alarme se torna ainda mais veemente diante dos erros, para não dizer heresias do novo direito canônico, e das cerimônias e discursos ao ensejo do quinto centenário do nascimento de Lutero.”
Não tivemos resposta, mas fizemos o que devíamos. Não podemos desesperar como se se tratasse duma empresa humana. As convulsões atuais passarão como passaram todas as heresias. Será preciso voltar um dia à tradição; na autoridade será necessário que reapareçam os poderes significados pela tiara, que um tribunal protetor da fé e dos bons costumes se estabeleça de novo permanentemente, que os bispos reencontrem seus poderes e sua iniciativa pessoal.
Será preciso liberar o verdadeiro trabalho apostólico de todos os impedimentos que hoje o paralisam e que fazem desaparecer o essencial da mensagem; restituir aos seminários sua verdadeira função, recriar sociedades religiosas, restaurar as escolas católicas e as universidades desembaraçando-as dos programas leigos do Estado, sustentar organizações patronais e operárias decididas a colaborar fraternalmente no respeito dos deveres e dos direitos de todos, interditando-se o flagelo social da greve, que não passa de uma guerra civil fria, promover enfim uma legislação civil conforme às leis da Igreja e ajudar na designação de representantes católicos movidos pela vontade de orientar a sociedade para um reconhecimento oficial do reinado social de Nosso Senhor.
Enfim, pois, que dizemos todos os dias quando rezamos? “Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”. E no Glória da missa? “Vós sois o único Senhor, Jesus Cristo”. Nós cantaríamos isto, e, apenas saídos da Igreja, diríamos: ”Ah não, estas noções estão ultrapassadas”, é impossível encarar no mundo atual a possibilidade de falar no reino de Jesus Cristo? Vivemos nós no ilogismo? Somos cristãos ou não?
As nações se debatem em dificuldades inextricáveis, em muitos lugares a guerra se eterniza, os homens tremem ao pensar na possível catástrofe nuclear, procura-se o que poderia ser feito para que a situação econômica se reerga, o dinheiro se valorize, o desemprego desapareça, as indústrias sejam prósperas. Pois bem, mesmo do ponto de vista econômico, é preciso que Nosso Senhor reine, porque este reino é o dos princípios de amor, dos mandamentos da lei de Deus, que criam um equilíbrio na sociedade, trazem a justiça e a paz. Pensais que seja uma atitude cristã colocar sua esperança em tal ou qual homem político, em tal combinação de partidos, imaginando que talvez um dia um programa melhor que outro resolverá os problemas dum modo seguro e definitivo, enquanto que deliberadamente se põe de lado “o único Senhor” como se Ele nada tivesse a ver com os assuntos humanos, como se isto não lhe fosse concernente? Qual é a fé daqueles que fazem de sua vida duas partes, com uma barreira estanque entre sua religião e suas outras preocupações políticas, profissionais, etc.? Deus que criou o céu e a terra não seria capaz de regular nossas miseráveis dificuldades materiais e sociais? Se vós já rezastes a Ele nos maus momentos de vossa existência, sabeis por experiência que Ele não dá pedras a seus filhos que lhe pedem pão.
A ordem social cristã se situa no oposto das teorias marxistas que jamais causaram, em todas as partes do mundo onde foram postas em prática, senão a miséria, o esmagamento dos mais fracos, o desprezo do homem e a morte. Ela respeita a propriedade particular, protege a família contra tudo o que a corrompe, encoraja a família numerosa e a presença da mulher no lar, deixa uma legítima autonomia às iniciativas privadas, encoraja as pequenas e médias indústrias, favorece o retorno à terra e estima em seu justo valor a agricultura, preconiza as uniões profissionais, concede a liberdade escolar, protege os cidadãos contra toda a forma de subversão e de revolução.
Esta ordem cristã se distingue com toda a certeza também dos regimes liberais fundados na separação da Igreja e do Estado e cuja impotência para superar as crises se afirma cada vez mais. Como o poderiam, após estarem voluntariamente privados d'Aquele que é “a luz dos homens”? Como poderiam reunir as energias dos cidadãos, uma vez que não têm mais outro ideal a propor-lhes senão o bem estar e o conforto? Eles puderam entreter a ilusão durante certo tempo porque os povos conservavam hábitos de pensamento cristãos e seus dirigentes mantinham, mais ou menos conscientemente, alguns valores. Na época das “reconsiderações”, as referências implícitas à vontade de Deus desaparecem; os sistemas liberais, abandonados a si mesmos, não sendo mais acionados por alguma idéia superior, se extenuam, são uma presa fácil para as ideologias subversivas.
Falar da ordem social cristã não é portanto apegar-se a um passado que teria terminado; é, ao contrário, uma posição de futuro com o qual não deveis ter medo de contar. Vós não travais um combate de retaguarda, vós sois os que sabem, porque receberam as lições d'Aquele que disse: “Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida”. Temos a superioridade de possuir a Verdade, o que não é defeito nosso, não temos que nos ensoberbecer com isto mas devemos agir conseqüentemente; a Igreja tem sobre o erro a superioridade de possuir a Verdade. Cabe a Ela, com a graça de Deus, propagá-la e não a esconder vergonhosamente sob o alqueire.
Ainda menos misturá-la ao joio, como se vê fazer constantemente. Li no Osservatore Romano, com a assinatura de Paolo Befani1, um artigo interessante sobre o favor concedido ao socialismo pelo Vaticano. O autor compara a situação da América Central e a da Polônia e escreve:
“A Igreja, deixando a situação da Europa, se encontra confrontada duma parte com a situação dos países da América Latina e a influência dos E.U.A. que se exerce sobre eles, e doutra parte com a situação da Polônia que se encontra na órbita do império soviético.
“Chocando-se de encontro a estas duas fronteiras, a Igreja que, com o concílio, assumiu e ultrapassou as conquistas líbero-democráticas da Revolução Francesa, e que na sua marcha para a frente (ver a encíclica Laborem exercens) se constitui como um “após” da Revolução russa marxista, oferece uma solução à falência do marxismo nesta “chave” dum “socialismo pós-marxista, democrático, de raiz cristã, autogestionária e não totalitária.”
“A réplica ao Leste é simbolizada pelo Solidarnosc que arvora a cruz em face aos Estaleiros Lenine. É o erro da América latina procurar a solução no comunismo marxista, num socialismo de raiz anticristã.”
Eis aí bem o ilusionismo liberal que associa palavras contraditórias com a persuasão de exprimir uma verdade! É a estes sonhadores adúlteros obcecados pela idéia de consorciar a Igreja com a revolução que nós devemos o caos do mundo cristão que abre as portas ao comunismo. São Pio X dizia dos sillonistas: “Eles anseiam pelo socialismo, com o olhar fixo numa quimera”. Seus sucessores continuam. Após a democracia cristã, o socialismo cristão! Acabaremos por chegar ao cristianismo ateu.
A solução a encontrar não concerne somente à falência do marxismo, mas à falência da democracia cristã, que não é preciso demonstrar. Basta de compromissos, de uniões contra a natureza! Que iremos buscar nestas águas turvas? O católico tem a verdadeira “chave”, é seu dever trabalhar com todas as forças, seja comprometendo-se pessoalmente na política, seja por seu voto para dar à sua pátria prefeitos, conselheiros, deputados resolvidos a restabelecer a ordem social cristã, a única capaz de obter a paz, a justiça, a verdadeira liberdade. Não há outra solução.

  1. 1. OSSERVATORE ROMANO, 18.1.84.

20. A Missa dita “de S. Pio V”, Missa de sempre


20 . A Missa dita “de S. Pio V”, Missa de sempre

Um fato sem dúvida não deixou de surpreender-vos: em nenhum momento desta questão se tratou da missa, a qual, não obstante, está no coração do conflito. Este silêncio forçado constitui a confissão de que o rito chamado de São Pio V continua bem autorizado.
Nesta matéria, os católicos podem estar perfeitamente tranquilos: esta missa não foi interditada nem o pode ser. São Pio V que, repitamo-lo, não a inventou mas “restabeleceu o missal segundo a regra antiga e os ritos dos Santos Padres”, nos dá todas as garantias na bula Quo Primum, assinada por ele a 14 de julho de 1570. ”Decidimos e declaramos que os Superiores, Administradores, Cônegos, Capelães e outros padres de qualquer título por que sejam designados, ou os Religiosos de qualquer ordem, não podem ser obrigados a celebrar a missa de modo diferente do que fixamos, e que jamais, em tempo algum, quem quer que seja poderá constrangê-los e forçá-los a deixar este missal ou a ab-rogar a presente instrução ou modificá-la, mas que ela permanecerá sempre em vigor e válida, em toda a sua força... Se entretanto alguém se permitisse uma tal alteração, saiba que incorreria na indignação de Deus Todo Poderoso e de seus bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo.”
Supondo que o papa pudesse voltar atrás a respeito deste indulto perpétuo, seria preciso que o fizesse por um ato também solene. A constituição apostólica Missale Romanum de 3 de abril de 1969 autoriza a missa dita de Paulo VI, que não contém interdição alguma expressamente formulada da missa tridentina1. A tal ponto que o cardeal Ottaviani podia dizer em 1971: “O rito tridentino da missa, que eu saiba, não foi abolido”. Mons. Adam que pretendia, na assembléia plenária dos bispos suíços, que a constituição Missae Romanum tinha interditado celebrar, salvo indulto, segundo o rito de São Pio V, teve de retratar-se, depois de lhe pedirem que dissesse em que termos esta interdição teria sido pronunciada.
Daí resulta que se um padre fosse censurado, e mesmo excomungado por esta causa, a condenação seria absolutamente inválida. São Pio V canonizou esta santa missa; ora, um papa não pode revogar uma canonização, assim como não o pode fazer com a de um santo. Nós podemos celebrá-la com toda a tranquilidade e os fiéis assisti-la sem o menor constrangimento, sabendo, quanto ao mais, que ela é a melhor maneira de manter a sua fé.
Isto é tão verdadeiro que Sua Santidade João Paulo II, após vários anos de silêncio sobre o capítulo da missa, acabou por desapertar a golilha imposta aos católicos. A carta da Congregação para o culto divino datada de 3 de outubro de 1984, “autoriza” de novo o rito de são Pio V para os fiéis que o pedirem. Ela impõe, certamente, condições que não podemos aceitar e, doutra parte, não tínhamos necessidade deste indulto para usufruir dum direito que nos foi outorgado até o fim dos tempos.
Mas este primeiro gesto — rezemos para que haja outros desta espécie — tira a suspeita indevidamente lançada sobre a missa e libera as consciências dos católicos perplexos que hesitavam ainda em assisti-la.
Venhamos agora à suspensão a divinis que me golpeou a 22 de julho de 1976. Ela foi consequência das ordenações de 29 de junho em Ecône: fazia três meses nos chegavam de Roma objurgações, súplicas, ordens, ameaças para dizer-nos que cessássemos nossas atividades, que não mais procedêssemos a estas ordenações sacerdotais. Durante os dias que precederam, não deixamos de receber mensagens e enviados: que nos diziam eles? Seis vezes seguidas pediram-me restabelecer relações normais com a Santa Sé, aceitando o rito novo e celebrando-o eu mesmo. Chegou-se até a me enviar um monsenhor que se ofereceu para concelebrar comigo, puseram-me nas mãos um missal novo prometendo-me que se eu celebrasse a missa de Paulo VI em 29 de junho, diante de toda a assembléia vinda para rezar pelos novos sacerdotes, tudo seria dali em diante aplainado entre Roma e mim.
O que significa que não me proibiam conferir estas ordenações mas as queriam segundo a nova liturgia. Ficava claro a partir deste momento que é sobre o problema da missa que desenrolava o drama entre Roma e Ecône, e que ainda se desenrola. Eu disse, no sermão da missa de ordenação: ”Amanhã talvez aparecerá nos jornais a nossa condenação, é muito possível devido a esta ordenação de hoje: serei atingido por uma suspensão provavelmente, estes jovens sacerdotes por uma irregularidade que em princípio deveria impedi-los de dizer a santa missa. É possível. Pois bem eu apelo para São Pio V”.
Certos católicos puderam ser perturbados por minha recusa desta suspensão a divinis. Mas o que é preciso compreender bem, é que tudo isto forma uma cadeia: por que se me recusava efetuar estas ordenações? Porque a Fraternidade tinha sido supressa e o seminário deveria ter sido fechado. Mas precisamente, eu não tinha aceito esta supressão, este fechamento, porque tinham sido decididos ilegalmente, porque as medidas tomadas estavam maculadas por diversos vícios canônicos tanto de forma como de fundo (notadamente o que os autores de direito administrativo denominam “desvio de poderes”, isto é, a utilização de competências contra o objetivo para o qual elas devem ser exercidas). Teria sido preciso que eu aceitasse tudo desde o início, mas não o fiz porque fomos condenados sem julgamento, sem poder defender-nos, sem admoestação, sem escrito e sem recurso. Uma vez que se recusa a primeira sentença, não há razão de não recusar as outras, pois as outras se apóiam sempre naquela. A nulidade duma acarreta a nulidade do que se segue.
Uma outra questão se coloca por vezes aos fiéis e aos sacerdotes, pode-se ter razão contra todo o mundo? Por ocasião de uma conferência de imprensa, o enviado de “Le Monde” me dizia: “Mas enfim vós estais só. Só contra o papa, só contra todos os bispos. Que significa vosso combate?” Pois bem, não, eu não estou sozinho. Tenho toda a tradição comigo, a Igreja existe no tempo e no espaço. E depois, eu sei que muitos bispos pensam como nós em seu foro interior. Hoje, desde a carta aberta ao papa que Dom Castro Mayer assinou comigo, somos dois a nos termos declarado abertamente contra a protestantização da Igreja. Temos muitos padres conosco. E depois há nossos seminários que fornecem atualmente cerca de 40 novos sacerdotes cada ano, nossos 250 seminaristas, nossos 30 irmãos, nossas 60 religiosas, nossos 30 oblatos, os mosteiros e os carmelos que se abrem e se desenvolvem, a multidão dos fiéis que vêm para nós.
A Verdade, aliás, não se realiza no número, o número não faz a Verdade. Mesmo se eu estivesse sozinho, se todos os meus seminaristas me deixassem, mesmo se toda a opinião pública me abandonasse, isto me seria indiferente no que me concerne. Estou ligado a meu credo, a meu catecismo, à tradição que santificou todos os eleitos que estão no céu, quero salvar minha alma. A opinião pública, conhece-se muito bem, foi a que condenou Nosso Senhor alguns dias após tê-lo aclamado. É o domingo de Ramos e depois há a Sexta-feira santa. Sua Santidade Paulo VI me perguntou: ”Mas enfim, no interior de vós mesmo, não sentis alguma coisa que vos reprova o que fizestes? Vós causais na Igreja um escândalo enorme, enorme. Vossa consciência não vo-lo diz? Respondi: Não, Santíssimo Padre, absolutamente. Se eu tivesse alguma coisa a me reprovar, cessaria imediatamente”.
O papa João Paulo II não confirmou nem invalidou a sanção pronunciada contra mim. Por ocasião da audiência que me concedeu em novembro de 1979, ele parecia bastante disposto, após uma conversação prolongada, a deixar a liberdade de escolha na liturgia, a deixar-me fazer, no final de contas, o que eu solicito desde o começo: entre todas as experiências que são efetuadas na Igreja, “a experiência da tradição”.
Parecia ter chegado o momento em que as coisas se iriam arranjar, não mais ostracismo contra a missa, não mais problema. Mas o cardeal Seper, que estava presente, viu o perigo; exclamou: “Mas Santíssimo Padre, eles fazem desta missa uma bandeira!” A pesada cortina que se havia erguido num instante recaiu. Será preciso esperar ainda.

  1. 1. Tridentino: que se refere ao Concílio de Trento.

19 . As sanções romanas contra Ecône


19 . As sanções romanas contra Ecône

Vós sois talvez, leitores perplexos, daqueles que vêem com tristeza e angústia o rumo que tomam as coisas, mas não obstante receiam assistir a uma verdadeira missa, apesar do desejo que experimentam, porque lhes fizeram crer que esta missa estava interditada. Sois talvez daqueles que não mais se dirigem aos padres de blusão mas que consideram com uma certa desconfiança os padres de batina, como se eles estivessem sob o golpe de alguma censura; aquele que os ordenou não é um bispo suspenso a divinis? Tendes medo de colocar-vos fora da Igreja; em princípio este temor é louvável, mas é mal esclarecido. Quero dizer-vos em que consistem as sanções, as quais foram postas em evidência, e com que os franco-maçons e os marxistas se regozijaram ruidosamente. Um curto apanhado histórico se revela necessário para que se compreenda bem.
Quando fui enviado ao Gabão como missionário, meu bispo me nomeou logo professor no seminário de Libreville, onde formei durante seis anos seminaristas, dentre os quais alguns, em seguida, receberam a graça do episcopado. Feito bispo por meu turno, em Dakar, pareceu-me que minha preocupação principal devia ser procurar vocações, formar os jovens que correspondessem ao apelo de Deus e de conduzi-los ao sacerdócio. Tive a alegria de conferir o sacerdócio ao que devia ser meu sucessor em Dakar, Dom Thiandoum e a Dom Dionne, o atual bispo de Thiès, no Senegal.
De volta à Europa para tomar posse do cargo de superior geral dos padres do Espírito Santo, esforcei-me por manter os valores essenciais da formação sacerdotal. Devo confessar que já nessa época, no começo dos anos 60, a pressão era tal, as dificuldades tão consideráveis que eu não pude obter o resultado que desejava; não podia manter o seminário francês de Roma, colocado sob a autoridade de nossa congregação na boa linha que era a sua quando nós mesmos aí estávamos, entre 1920 e 1930. Eu me demiti em 1968 para não avalizar a reforma empreendida pelo capítulo geral num sentido contrário ao da tradição católica. Antes já desta data, eu recebia numerosos apelos, de famílias e de sacerdotes perguntando-me para que lugares de formação dirigir os jovens que desejavam tornar-se padres. Confesso que estava muito hesitante. Exonerado de minhas responsabilidades e quando cogitava em retirar-me, pensei na universidade de Friburgo, na Suíça, ainda orientada e dirigida pela doutrina tomista. O bispo, Dom Charrière me recebeu de braços abertos, aluguei uma casa e acolhemos nove seminaristas que seguiam os cursos na universidade e levavam no resto do tempo, uma verdadeira vida de seminário. Eles muito depressa manifestaram o desejo de continuar, no futuro, a trabalhar juntos e, depois de refletir, fui perguntar a Dom Charrière se ele aceitava assinar um decreto de fundação duma “Fraternidade”. Aprovou os seus estatutos e assim nasceu, a 1° de novembro de 1970, a “Fraternidade Sacerdotal de São Pio X”.
Estávamos erigidos canonicamente na diocese de Friburgo.
Estes pormenores são importantes, vós ireis vê-lo. Um bispo tem o direito, canonicamente, de erigir em sua diocese associações que Roma pelo próprio fato reconhece. A tal ponto que se um bispo, sucessor do primeiro, desejar suprimir esta associação, ele não o pode fazer sem recorrer a Roma. A autoridade romana protege o que fez o primeiro bispo, afim de que as associações não estejam submetidas a uma precariedade que seria nociva ao seu desenvolvimento. Assim o quer o direito da Igreja1.
A Fraternidade sacerdotal de São Pio X é por conseguinte reconhecida por Roma dum modo inteiramente legal, ainda que sendo de direito diocesano, e não de direito pontifício, o que não é indispensável. Existem centenas de congregações religiosas de direito diocesano que têm casas no mundo inteiro.
Quando a Igreja aceita uma fundação, uma associação diocesana, ela aceita que esta forme seus membros, se é uma congregação religiosa, ela aceita que haja um noviciado, uma casa de formação. Para nós são os seminários. A 18 de fevereiro de 1971, o cardeal Wright, prefeito da Congregação do clero, me enviara uma carta de encorajamento em que ele se mostrava tranquilizado de que a Fraternidade ”poderia muito bem concordar com o fim visado pelo concílio neste santo Dicastério em vista da distribuição do clero no mundo”. E não obstante, em novembro de 1972 se falava na assembléia plenária do episcopado francês, em Lourdes, de “seminário selvagem”, sem que nenhum dos bispos presentes, necessariamente a par da situação jurídica do seminário de Ecône, protestasse.
Por que nos consideravam como selvagens? Porque nós não dávamos a chave da casa aos seminaristas para que eles pudessem sair todas as noites a seu gosto, porque não os fazíamos ver a televisão de oito a onze horas, porque não usavam “col roulé” e assistiam à missa todas as manhãs em lugar de ficarem na cama até a primeira aula.
E apesar disso, o cardeal Garrone2, com quem eu me encontrei nesta época, me dizia: “Vós não dependeis diretamente de mim e eu não tenho a dizer-vos senão uma coisa: segui a ratio fundamentalis que eu dei para a fundação dos seminários, que todos os seminários devem seguir.” A ratio fundamentalis prevê que se ensine ainda latim no seminário, que se façam os estudos segundo a doutrina de Santo Tomás. Eu me permiti responder: “Eminência, acredito que somos alguns poucos a segui-la”. É ainda mais verdadeiro hoje e a ratio fundamentalis está ainda em vigor. Portanto, o que é que nos reprova?
Quando foi necessário abrir um verdadeiro seminário e eu aluguei a casa de Ecône, antiga casa de repouso dos monges do grande São Bernardo, fui encontrar dom Adam, bispo de Sion, que me deu seu consentimento. Esta criação não era o resultado dum projeto longínquo que eu tinha formado, ela se me impunha providencialmente. Eu tinha dito: ”se a obra se espalha mundialmente, será o sinal de que Deus está com ela.” De ano para ano o número dos seminaristas crescia: em 1970 havia 11 entradas, em 1974, 40. A inquietude se espalhava entre os inovadores: era evidente que, se nós formávamos seminaristas, era para ordená-los e que os futuros sacerdotes seriam fiéis à missa da Igreja; à missa da tradição à missa de sempre. Não é preciso buscar em outra parte a razão dos ataques aos quais nós estávamos expostos; um perigo para a Igreja neomodernista, importava detê-lo antes que fosse demasiado tarde.
É assim que, a 11 de novembro de 1974, chegavam ao seminário, com as primeiras neves, dois visitadores apostólicos enviados por uma comissão nomeada pelo papa Paulo VI e composta de três cardeais, Garrone, Wright e Tabera, sendo este último prefeito da Congregação dos religiosos. Eles interrogaram 10 professores e 20 dos 104 alunos presentes, assim como a mim mesmo, e regressaram dois dias mais tarde deixando uma desagradável impressão: tinham feito aos seminaristas afirmações escandalosas, julgando normal a ordenação de pessoas casadas, declarando que não admitiam uma verdade imutável e emitindo dúvidas sobre a maneira tradicional de conceber a Ressurreição de Nosso Senhor. Do seminário nada disseram nem deixaram nenhum protocolo. Em consequência disto, indignado com as afirmações feitas, eu publicava uma declaração que começava por estas frases:
“Nós aderimos de todo o coração, de toda a nossa alma à Roma católica, guardiã da fé católica e das tradições necessárias à manutenção desta fé, à Roma eterna, mestra da sabedoria e da verdade.
“Recusamos pelo contrário e sempre temos recusado seguir a Roma de tendência neo-modernista e neo-protestante que se manifestou claramente no concílio Vaticano II e depois do concílio, em todas as reformas dele provenientes.”
Os termos eram sem dúvida um pouco incisivos, mas traduziam e traduzem sempre o meu pensamento. É por causa deste texto que a comissão cardinalícia decidiu abater-nos, pois ela não o podia fazer referindo-se à conduta do seminário: os cardeais dir-me-ão dois meses mais tarde que os visitadores apostólicos tinham recolhido uma boa impressão de sua investigação.
Ela convidou-me, a 13 de fevereiro seguinte, para uma “conversa” em Roma, para esclarecer alguns pontos e eu fui até lá, sem duvidar de que se tratava de uma armadilha. A conversa, desde o início, se tornou um interrogatório cerrado, de tipo judiciário. Ela foi seguida por uma segunda, a 3 de março, e dois meses mais tarde, a comissão me informava “com inteira aprovação de Sua Santidade”, das decisões que havia tomado: Dom Mamie, novo bispo de Friburgo, se via reconhecer o direito de retirar a aprovação dada à Fraternidade por seu predecessor. Pelo próprio fato esta, assim como suas fundações e notadamente o seminário de Ecône, perdia o “direito à existência”.
Sem esperar notificação destas decisões, Dom Mamie me escrevia: Informo-vos pois de que eu retiro os atos e as concessões efetuados por meu predecessor no que respeita à Fraternidade sacerdotal são Pio X, particularmente o decreto de ereção de 1 de novembro de 1970. Esta decisão é imediatamente efetiva.”
Se bem me tendes seguido, podeis verificar que esta supressão foi feita pelo bispo de Friburgo e não pela Santa Sé. Em virtude do cânon 493 é assim uma medida nula de pleno direito por defeito de competência.
A isto se acrescentou um defeito de causa suficiente. A decisão não se pode apoiar senão na minha declaração de 21 de novembro de 1974, julgada pela comissão “em todos os pontos inaceitável”, uma vez que pelos dizeres da dita comissão, os resultados da visita apostólica eram favoráveis. Ora, minha declaração jamais foi objeto duma condenação da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (o antigo Santo Ofício), a única habilitada a julgar se ela está em oposição à fé católica. Ela não foi tida “em todos os pontos inaceitável” a não ser por três cardeais, no decorrer do que ficou considerado oficialmente como uma conversa.
A existência jurídica da própria comissão não foi jamais demonstrada. Por qual ato pontifical foi ela instituída? Em que data? Em que forma foi tomada? A quem foi notificada? O fato de as autoridades romanas se haverem recusado a apresentá-lo, permite duvidar de sua existência. “Na dúvida de direito, a lei não obriga”, diz o Código de direito canônico. Ainda menos quando é a competência e mesmo a existência da autoridade que é duvidosa. Os termos “com a inteira aprovação de Sua Santidade“ são juridicamente insuficientes; eles só poderiam substituir o decreto que deveria ter constituído a comissão cardenalícia e definir seus poderes.
Outras tantas irregularidades de procedimento que tornam nula a suspensão da Fraternidade. Não se deve esquecer ademais que a Igreja não é uma sociedade totalitária de tipo nazista ou marxista, e que o direito, mesmo quando ele é respeitado — o que não é o caso nesta questão — não constitui algo de absoluto. Ele é relativo à verdade, à fé, à vida. O direito canônico é feito para fazer-nos viver espiritualmente e conduzir-nos assim à vida eterna. Se se emprega esta lei para impedir-nos de lá chegar, para fazer abortar de qualquer maneira nossa vida espiritual, estamos obrigados a desobedecer exatamente da mesma sorte que os cidadãos estão obrigados, numa nação, a desobedecer à lei do aborto.
Para permanecer no plano jurídico eu introduzi dois recursos sucessivos junto ao Tribunal apostólico, que é um pouco o equivalente ao Tribunal Supremo de cassação no direito civil. O cardeal secretário de Estado, Mons. Villot, proibiu este tribunal supremo da Igreja de recebê-los, o que corresponde a uma intervenção do executivo no judiciário.

  1. 1. Cânon 493.
  2. 2. Prefeito da Congregação da Educação Católica.

18 . A verdadeira obediência


18 . A verdadeira obediência

A indisciplina está por toda a parte na Igreja, comissões de padres enviam intimações a seus bispos, os bispos desprezam exortações pontifícias, as próprias recomendações e decisões conciliares não são respeitadas e apesar disto não se ouve jamais pronunciar a palavra desobediência salvo para aplicá-la aos católicos que querem continuar fiéis à tradição e simplesmente conservar a fé.
A obediência constitui um assunto grave, ficar unido ao magistério da Igreja e particularmente ao Pontífice Supremo é uma das condições da salvação. Nós temos profunda consciência disto e também ninguém mais do que nós é apegado ao sucessor de Pedro atualmente reinante, como nós o fomos a seus predecessores, e eu falo aqui de mim e dos numerosos fiéis rejeitados das igrejas, dos sacerdotes obrigados a celebrar a missa em granjas como durante a Revolução Francesa, e a organizar catecismos paralelos nas cidades e nos campos.
Somos apegados ao papa enquanto ele se faz o eco das tradições apostólicas e dos ensinamentos de todos os seus predecessores. É a definição mesma do sucessor de Pedro guardar este depósito! Pio IX nos ensina na Pastor aeternus: “O Espírito Santo com efeito não foi prometido aos sucessores de Pedro para permitir-lhe publicar, segundo suas revelações, uma nova doutrina mas para conservar estritamente e expor fielmente, com sua assistência, as revelações transmitidas pelos Apóstolos, isto é, o depósito da fé.”
A autoridade delegada por Nosso Senhor ao papa, aos bispos e ao sacerdócio em geral está ao serviço da fé. Servir-se do direito, das instituições, da autoridade para aniquilar a fé católica e não mais comunicar a vida, é praticar o aborto ou a contraconcepção espirituais. É por isso que estamos submissos e prontos a aceitar tudo o que é conforme à nossa fé católica, tal como foi ensinada durante dois mil anos, mas recusamos tudo o que lhe é contrário.
Pois enfim, um problema grave se colocou à consciência e à fé de todos os católicos durante o pontificado de Paulo VI. Como é que um papa, verdadeiro sucessor de Pedro, assegurado pela assistência do Espírito Santo, pôde presidir à mais profunda e mais ampla destruição da Igreja na sua história num espaço de tão pouco tempo, coisa que nenhum heresiarca jamais conseguiu fazer? A esta pergunta será bem preciso responder um dia.
Na primeira metade do século V, são Vicente de Lerins, que foi soldado antes de se consagrar a Deus e declara ter sido “agitado muito tempo sobre o mar do mundo antes de se recolher ao porto da fé”, falava assim do desenvolvimento do dogma: “Não haveria nenhum progresso da religião na Igreja de Cristo? Havê-los-á certamente e muito importantes, de tal maneira que seja um progresso da fé e não uma mudança. Importa que cresçam abundante e intensamente em todos e em cada um, nos indivíduos como nas Igrejas, no decurso das épocas, a inteligência, a ciência, a sabedoria, contanto que seja na identidade do dogma, dum mesmo pensamento”. Vicente conhecia o impacto das heresias e deu uma regra de conduta ainda sempre boa após mil e quinhentos anos: “Que fará então o cristão católico se alguma parcela da Igreja acaba por desligar-se da comunhão, da fé universal? Que outro partido tomar senão preferir ao membro granguenado e corrompido o corpo em seu conjunto que é são? E se algum contágio novo se esforça por envenenar, não mais uma pequena parte da Igreja, mas a Igreja inteira duma só vez, então seu grande cuidado será apegar-se à antiguidade, que evidentemente não pode mais ser seduzida por nenhuma novidade perigosa.”
Nas ladainhas das Rogações, a Igreja nos faz dizer: “Nós vos suplicamos, Senhor, manter na vossa santa religião o Soberano Pontífice e todas as ordens da hierarquia eclesiástica”. Isto quer bem dizer que uma tal desgraça pode suceder.
Na Igreja não há nenhum direito, nenhuma jurisdição que possa impor a um cristão uma diminuição de sua fé. Todo o fiel pode e deve resistir, apoiado no catecismo de sua infância, a quem quer que atentar contra a sua fé. Se ele se encontra em presença duma ordem que a põe em perigo de corrupção, a desobediência é um dever imperioso.
É porque julgamos que nossa fé está em perigo pelas reformas e as orientações pós-conciliares, que temos o dever de desobedecer e de conservar a tradição. Acrescentemos o seguinte: é o maior serviço que podemos prestar à Igreja e ao sucessor de Pedro recusar a Igreja reformada e liberal. Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, não é nem liberal nem reformável.
Eu ouvi por duas vezes enviados da Santa Sé me dizerem: ”O reinado social de Nosso Senhor não é mais possível em nosso tempo, é preciso aceitar definitivamente o pluralismo das religiões.” Eis exatamente o que eles me disseram.
Pois bem, eu não sou desta religião. Não aceito esta nova religião. É uma religião liberal, modernista, que tem seu culto, seus sacerdotes, sua fé, seus catecismos, sua Bíblia ecumênica traduzida em comum por católicos, judeus, protestantes, anglicanos, jogando com pau de dois bicos, dando satisfação a todo o mundo, sacrificando muito frequentemente a interpretação do magistério. Nós não aceitamos esta Bíblia ecumênica. Há a Bíblia de Deus, é Sua Palavra a qual não temos o direito de misturar com a palavra dos homens.
Quando eu era criança, a Igreja tinha por toda parte, a mesma fé, os mesmos sacramentos, o mesmo sacrifício da missa. Se me houvessem dito então que isto mudaria, eu não teria podido acreditar. Em toda a extensão da cristandade se rezava a Deus da mesma maneira. A nova religião liberal e modernista semeou a divisão.
Cristãos estão divididos no seio duma mesma família devido a esta confusão que foi instaurada, não vão mais à mesma missa, não lêem mais os mesmos livros. Sacerdotes não sabem mais o que fazer: ou obedecem cegamente ao que seus superiores lhes impõem e perdem de alguma sorte a fé de sua infância e de sua juventude, renunciam às promessas que fizeram no momento de sua ordenação, prestando o juramento antimodernista; ou resistem, mas é com a impressão de se separar do papa, do vigário de Cristo. Nos dois casos, que dilaceração! Muitos sacerdotes morreram prematuramente de desgosto.
Quantos outros foram obrigados a abandonar suas paróquias nas quais, há anos, eles exerciam seu ministério, expostos à perseguição aberta de sua hierarquia e apesar do apoio dos fiéis aos quais se arrancava o seu pastor.
Tenho debaixo dos olhos as despedidas comoventes de um deles à população das duas paróquias das quais era vigário: “Na sua conversa de... o senhor bispo me dirigiu um ultimatum: aceitar ou recusar a nova religião; eu não me poderia esquivar. Então para continuar fiel ao compromisso de meu sacerdócio, para continuar fiel à Igreja eterna... fui constrangido e forçado, contra a minha vontade, a retirar-me... A simples honestidade e sobretudo minha honra sacerdotal me criam uma obrigação de ser leal, precisamente nesta matéria de gravidade divina (a missa)... É esta prova de fidelidade e de amor que devo dar a Deus e aos homens, a vós em particular e é a respeito dela que eu serei julgado no último dia, como, aliás, todos aqueles a quem foi confiado este mesmo depósito”.
Na diocese de Campos, no Brasil, a quase totalidade do clero foi expulsa das igrejas após a saída de Dom Castro Mayer, por não querer abandonar a missa de sempre, tal como a celebravam ainda até uma data recente.
A divisão afeta as mínimas manifestações de piedade. Em Val-de-Marne, o bispado fez expulsar pela polícia vinte e cinco católicos que recitavam o rosário numa igreja particular de vigário titular há muitos anos. Na diocese de Metz, o bispo fez intervir o prefeito comunista para que fosse suspenso o empréstimo de um local concedido a um grupo de tradicionalistas. No Canadá seis fiéis foram condenados pelo tribunal, que a lei deste país permite ter competência nesta espécie de questão, por se haverem obstinado a comungar de joelhos. O bispo de Antigonish os havia acusado de “perturbar voluntariamente a ordem e a dignidade dum serviço religioso”. Os “perturbadores” foram postos pelo juiz em liberdade sob vigilância durante seis meses! Ao mesmo tempo o bispo proíbe aos cristãos de dobrarem o joelho diante de Deus! No ano passado, a peregrinação dos jovens a Chartres terminou com uma missa nos jardins da catedral, estando esta interditada à missa de são Pio V. Quinze dias mais tarde, as portas estavam abertas de par a par para um concerto espiritual no decorrer do qual foram interpretadas danças por uma antiga carmelita.
Duas religiões se afrontam; nós nos encontramos numa situação dramática, não é possível deixar de fazer uma escolha, mas esta escolha não é entre a obediência e a desobediência. O que se nos propõe, aquilo a que se nos convida expressamente, porquê nos perseguem, é escolher um simulacro de obediência. O Santo Padre, com efeito, não nos pode pedir que abandonemos nossa fé.
Nós escolhemos então conservá-la e não podemos enganar-nos atendo-nos àquilo que a Igreja ensinou durante dois mil anos. A crise é profunda, sabiamente organizada e dirigida, por sinal que se pode verdadeiramente crer que o chefe do empreendimento não é um homem, mas o próprio Satã. Ora é um golpe magistral de Satã ter chegado a fazer os católicos desobedecerem a toda a tradição em nome da obediência. Um exemplo típico é fornecido pelo aggiornamento das sociedades religiosas: por obediência se faz os religiosos e religiosas desobedecerem às leis e constituições de seus fundadores as quais eles juraram observar quando fizeram sua profissão. A obediência, neste caso, deveria ser uma recusa categórica. A autoridade, mesmo legítima, não pode ordenar um ato repreensível, mau. Ninguém pode obrigar qualquer pessoa a transformar seus votos monásticos em simples promessas. Igualmente ninguém pode fazer que nos tornemos protestantes ou modernistas.
Santo Tomás de Aquino a quem se é preciso sempre referir, chega mesmo a perguntar-se na Suma Teológica se a “correção fraterna” prescrita por Nosso Senhor pode-se exercer em relação aos superiores. Após ter feito todas as distinções úteis ele responde: “Pode-se exercer em relação aos superiores quando se trata da fé.”
Se nos mantivéssemos mais firmes neste capítulo evitaríamos vir a assimilar bem lentamente as heresias. No começo do século XVI, os ingleses conheceram uma aventura do gênero daquela que nós vivemos, com esta diferença, que ela começou por um cisma. Quanto ao resto, as semelhanças são espantosas e próprias a fazer-nos refletir. A nova religião, que tomará o nome de anglicanismo começa pela ofensiva contra a missa, a confissão pessoal, o celibato eclesiástico. Henrique VIII, se bem que assumiu a enorme responsabilidade de separar seu povo de Roma, recusa as sugestões que lhe são feitas, mas, no ano seguinte ao da sua morte, uma ordenação autoriza o uso do inglês na celebração da missa. As procissões são interditadas, um novo ordo é imposto, o Order of Communion, no qual o ofertório não existe mais. Para tranquilizar os cristãos uma outra ordenação proíbe toda a sorte de mudanças, enquanto que uma terceira permite aos vigários suprimir as estátuas dos santos e da Santíssima Virgem nas igrejas. Obras de arte veneráveis são vendidas a comerciantes, tudo como hoje nos antiquários e bricabraques.
Alguns bispos apenas fizeram notar que o Order of Communion causava dano ao dogma da presença real, dizendo que Nosso Senhor nos dá seu corpo e seu sangue espiritualmente. O Confiteor traduzido em língua vernácula era recitado ao mesmo tempo pelo celebrante e pelos fiéis, ele servia de absolvição. A missa era transformada em refeição “turning into a Communion”. Mas mesmo os bispos lúcidos aceitavam finalmente o novo livro para manter a paz e a união. É exatamente pelas mesmas razões que a Igreja pós-conciliar queria impor-nos o novo ordo. Os bispos ingleses afirmaram, no século XVI, que a missa era um “memorial”! Uma farta propaganda fez passar as maneiras de ver luteranas para o espírito dos fiéis; os pregadores deviam ser aprovados pelo governo.
Durante o mesmo tempo, o papa não é mais chamado senão o “bispo de Roma”, ele não é mais o pai e sim o irmão dos outros bispos e no caso presente, o irmão do rei da Inglaterra que se instituiu chefe da Igreja nacional. O Prayer Book de Crammer foi composto misturando-se partes da liturgia grega com a liturgia de Lutero. Como não pensar em Mons. Bugnini redigindo a missa dita de Paulo VI com a colaboração de seus “observadores” protestantes adidos qualificados ao Conselho para a reforma da liturgia? O Prayer Book começa por estas palavras: “A Ceia e Santa Comunhão comumente chamada missa...” prefiguração do famoso artigo 7 da Institutio Generalis do Novo Missal, retomado pelo Congresso Eucarístico de Lourdes em 1981: “A Ceia do Senhor, chamada de outra maneira a missa...” A destruição do sagrado da qual eu falava mais acima, estavam incluídas também na reforma anglicana: as palavras do Canon deviam obrigatoriamente ser ditas em voz alta, assim como acontece nas “Eucaristias” atuais.
O Prayer Book foi também aprovado pelos bispos “para conservar a unidade interior do reino”. Os sacerdotes que continuavam a dizer “a missa antiga” incorriam em penas que iam da perda de seus proventos à exoneração pura e simples, em caso de reincidência, e à prisão perpétua. É preciso reconhecer que em nossos dias não se põem mais na prisão os sacerdotes “tradicionalistas”.
A Inglaterra dos Túdores descambou para a heresia sem bem se dar conta, aceitando a mudança sob pretexto de adaptar-se às circunstâncias históricas do tempo, tendo à frente seus pastores. É hoje toda a cristandade que corre o risco de tomar o mesmo caminho e vós pensastes que se nós, que temos uma certa idade, corremos um perigo menor, as crianças, os jovens seminaristas formados nos novos catecismos, na psicologia experimental, na sociologia, sem nenhuma tintura de teologia dogmática e moral, de direito canônico, de história da Igreja, são educados numa fé que não é a verdadeira, encontram normais as noções neo-protestantes que se lhes inculcam? Que será da religião de amanhã se nós não resistimos?
Vós tereis a tentação de dizer: “Mas que podemos fazer? É um bispo que diz isto ou aquilo. Vede, este documento vem da comissão da catequese, ou duma outra comissão oficial.”
Portanto, nada mais vos resta senão perder a fé. Mas não tendes o direito de reagir assim. São Paulo nos advertiu: “Se mesmo um anjo viesse do céu dizer-vos outra coisa do que vos ensinei, não o escuteis.”
Tal é o segredo da verdadeira obediência.

17 . Que é a Tradição?


17. Que é a Tradição?

É bem o modernismo que mina a Igreja do interior, em nossos dias como ontem. Tomemos ainda na encíclica Pascendi alguns trechos correspondendo ao que estamos vivendo. “Desde o momento em que seu fim é inteiramente espiritual, a autoridade religiosa deve despojar-se de todo este aparato exterior, de todos estes ornamentos pomposos pelos quais ela se dá como um espetáculo. Nisto eles se esquecem que a religião, se ela pertence propriamente à alma, apesar disto não se confina a ela, e que a honra prestada à autoridade recai sobre Jesus Cristo que a instituiu.”
É sob a pressão destes “dizedores de novidades” que Paulo VI abandonou a tiara, que os bispos se despojaram da batina roxa e mesmo da batina negra, assim como de seu anel, que os sacerdotes se apresentam em traje civil e na maior parte do tempo numa postura voluntariamente negligenciada. Não são somente as reformas gerais já postas em obra ou reclamadas com insistência que são Pio X mencionou como sendo o desejo “maníaco” dos modernistas reformadores. Vós os reconheceis nesta passagem: “No que toca ao culto (eles querem) que se diminua o número de devoções exteriores ou ao menos que se lhes detenha o crescimento... Que o governo eclesiástico se transforme numa democracia, que se dê uma parte no governo ao clero inferior e mesmo aos leigos; que a autoridade seja descentralizada. Reforma das congregações romanas, sobretudo das do Santo Ofício e do Índice... Há enfim quem, fazendo eco a seus mestres protestantes, desejam a supressão do celibato eclesiástico.”
Vedes que as mesmas reclamações são formuladas hoje e aí não há nenhuma imaginação nova. Para o pensamento cristão e a formação dos futuros sacerdotes, a vontade dos reformistas do tempo de Pio X era o abandono da filosofia escolástica, que devia ser relegada “à história da filosofia entre os sistemas caducos” e eles preconizavam “que se ensine aos jovens a filosofia moderna, a única verdadeira, a única que convém a nossos tempos... que a teologia dita racional tenha por base a filosofia moderna, a teologia positiva, por fundamento a história dos dogmas”. Neste ponto, os modernistas obtiveram o que queriam, e mais ainda. No que se tem em lugar de seminário, ensina-se a antropologia e a psicanálise, Marx em substituição a Santo Tomás de Aquino. Os princípios da filosofia tomista são rejeitados, em proveito de sistemas incertos dos quais eles mesmos reconhecem a inaptidão para dar conta da economia do universo, uma vez que propulsionam a filosofia do absurdo. Um revolucionário destes últimos tempos, sacerdote trapalhão muito escutado pelos intelectuais que colocava o sexo no centro de tudo, não receava declarar em reuniões públicas: “As hipóteses dos antigos no domínio científico eram puras asneiras e é sobre tais asneiras que Santo Tomás e Orígenes apoiaram seus sistemas.” Ele caía, logo depois no absurdo, definindo a vida como “um encadeamento evolutivo de fatos biológicos inexplicáveis.” Como o sabe ele, se é inexplicável? Como um sacerdote, acrescentaria eu, pode pôr de lado a única explicação que é Deus?
Os modernistas seriam reduzidos a nada se devessem defender suas elucubrações contra os princípios do Doutor Angélico, as noções de potência e ato, de essência, de substância e de acidentes, de alma e de corpo, etc. Eliminando estas noções, eles tornavam incompreensível a teologia da Igreja e, como se lê no Motu Proprio Doctoris Angelici, “disto resulta que os estudantes das disciplinas sagradas não percebem mais a própria significação das palavras pelas quais os dogmas que Deus revelou são propostos pelo magistério”. A ofensiva contra a filosofia escolástica é então necessária quando se quer mudar o dogma, atacar a Tradição.
Mas o que é a Tradição? Parece-me que, com frequência, a palavra é imperfeitamente compreendida: comparam-na às tradições como existem nas profissões, nas famílias, na vida civil: o buquê fixado sobre a cumieira da casa quando se coloca a última telha, o cordão que se corta para inaugurar um monumento, etc. Não é disto que eu falo; a tradição, não são os costumes legados pelo passado e conservados por fidelidade a este, mesmo na ausência de razões claras. A tradição se define como o depósito da fé transmitido pelo magistério de século em século. Este depósito é aquele que nos deu a Revelação, isto é, a palavra de Deus confiada aos Apóstolos e cuja transmissão é assegurada por seus sucessores.
Ora atualmente, se quer pôr todo o mundo em pesquisa “como se o Credo não nos tivesse sido dado, como se Nosso Senhor não tivesse vindo trazer a Verdade, uma vez por todas. Que se pretende encontrar com toda esta pesquisa? Os católicos a quem se quer impor ”reconsiderações”, após se lhes ter feito “esvaziar suas certezas”, devem lembrar-se do seguinte: o depósito da Revelação terminou no dia da morte do último Apóstolo. Acabou, não se pode mais nele tocar até a consumação dos séculos. A Revelação é irreformável. O concílio I do Vaticano relembrou-o explicitamente: “a doutrina de fé que Deus revelou não foi proposta às inteligências como uma invenção filosófica que elas tivessem que aperfeiçoar, mas foi confiada como um depósito divino à Esposa de Jesus Cristo (Igreja) para ser por Ela fielmente conservada e infalivelmente interpretada.”
Mas, dir-se-á, o dogma que fez Maria a mãe de Deus não remonta senão ao ano de 431, o da transubstanciação a 1215, a infalibilidade pontifícia a 1870 e assim por diante. Não houve aí uma evolução? De modo nenhum. Os dogmas definidos no curso das idades estavam contidos na Revelação, a Igreja simplesmente os explicitou. Quando o papa Pio XII definiu, em 1950, o dogma da Assunção, ele disse precisamente que esta verdade da translação ao céu da Virgem Maria com seu corpo se encontrava no depósito da Revelação, que ela existia já nos textos que nos foram revelados antes da morte do último Apóstolo. Não se pode trazer nada de novo neste domínio, não se pode acrescentar um só dogma, mas exprimir os que existem duma maneira sempre mais clara, mais bela e mais grandiosa.
Isto é tão certo que constitui a regra a seguir para julgar os erros que se nos propõem quotidianamente e para rejeitá-los sem nenhuma concessão. Bossuet o escreveu com energia: “Quando se trata de explicar os princípios da moral cristã e os dogmas essenciais da Igreja, tudo o que não aparece na tradição de todos os séculos e especialmente na Antigüidade, é por isso mesmo não somente suspeito mas mau e condenável; e é o principal fundamento sobre o qual todos os santos Padres (da Igreja) e os papas mais que os outros, condenaram falsas doutrinas, não havendo nada de mais odioso à Igreja romana que as novidades.”
O argumento que se faz valer aos fiéis aterrorizados é este: “Vós vos agarrais ao passado, sois passadistas, vivei com vosso tempo!” Alguns desconcertados, não sabem o que responder; ora, a réplica é fácil; aqui não há nem passado nem presente, nem futuro, a Verdade é de todos os tempos, ela é eterna.
Para difamar a tradição, opõe-se-lhe a sagrada escritura, à maneira protestante, afirmando que o Evangelho é o único livro que conta. Mas a tradição é anterior ao Evangelho! Se bem que os Sinóticos tenham sido escritos bem menos tardiamente do que se tenta fazer crer, antes que os Quatro tivessem terminado a sua redação, passaram-se vários anos; ora a Igreja já existia, tinha havido Pentecostes, acarretando numerosas conversões, três mil no mesmo dia, ao sair do Cenáculo. Em que acreditaram eles naquele momento? Como se fez a transmissão da Revelação a não ser por tradição oral? Não se poderia subordinar a tradição aos Livros Santos e com mais forte razão recusá-la.
Mas não creiamos que, fazendo isto, eles tenham um respeito ilimitado pelo texto inspirado. Eles contestam mesmo que ele o seja na sua totalidade: ”O que há de inspirado no Evangelho? Somente as verdades que são necessárias à nossa salvação.” Por conseguinte os milagres, os relatos da infância, os acontecimentos e atos de Nosso Senhor são remetidos ao gênero biográfico mais ou menos lendário. No concílio discutiu-se sobre esta frase: ”Apenas as verdades necessárias à salvação”; havia bispos que queriam reduzir a autenticidade histórica dos evangelhos, o que mostra a que ponto o clero estava gangrenado pelo neo-modernismo. Os católicos não se devem deixar iludir: todo o Evangelho é inspirado; os que o escreveram tinham realmente sua inteligência sob a influência do Espírito Santo, de tal sorte que a totalidade é a palavra de Deus, Verbum Dei. Não é permitido escolher e dizer hoje: “Nós tomamos tal parte, nós não queremos tal outra.“ Escolher é ser herético, segundo a etimologia grega da palavra.
Não é menos verdade que é a tradição que nos transmite o Evangelho, e pertence à tradição, ao magistério, explicar-nos o que há no Evangelho. Se não temos ninguém para no-lo interpretar, podemos ser muitos a compreender dum modo inteiramente oposto a mesma palavra de Cristo. Desemboca-se então no livre exame dos protestantes e na livre inspiração de todo este carismatismo atual que nos lança na pura aventura.
Todos os concílios dogmáticos nos deram a expressão exata da tradição, a expressão exata do que os Apóstolos ensinaram. É irreformável. Não se podem mais mudar os decretos do concílio de Trento, porque eles são infalíveis escritos e baixados por um ato oficial da Igreja, à diferença do Vaticano II cujas proposições não são infalíveis, porque os papas não quiseram comprometer sua infalibilidade. Ninguém então vos pode dizer: “Vos nos agarrais ao passado, permanecestes no concílio de Trento.” Porque o concílio de Trento não é o passado! A tradição se reveste dum caráter intemporal, adaptado a todos os tempos e a todos os lugares.

16 . O neo-modernismo ou “Pierre Vivantes” em ruínas


16 . O neo-modernismo ou “Pierre Vivantes” em ruínas
 
No vocabulário inteiramente renovado dos homens da Igreja, algumas palavras sobreviveram. Fé é uma delas. Contudo é empregada nas mais diversas acepções. Ora, existe uma definição da fé, não se pode mudá-la. É a ela que se deve referir o católico quando não entende mais nada do palavreado confuso e pretensioso que se lhe apresenta.
A fé é a adesão da inteligência à verdade revelada pelo Verbo de Deus. Nós cremos numa verdade que vem de fora e que não é, de maneira alguma, segregada por nosso espírito. Nela acreditamos devido à autoridade de Deus que no-la revela, não é preciso buscar alhures.
Esta fé ninguém possui o direito de no-la tomar para substituí-la por uma outra. Vemos ressurgir uma definição modernista da fé, já condenada por Pio X há oitenta anos, e segundo a qual ela seria um sentimento interior: não seria preciso procurar a explicação da religião fora do homem: ”É pois no próprio homem que ela se encontra e, como a religião é uma forma de vida, na vida mesma do homem.” Ela seria alguma coisa de puramente subjetivo, uma adesão da alma a Deus sendo Ele próprio inacessível à nossa inteligência, cada um por si, cada um na sua consciência.
O modernismo não é uma invenção recente, ele já não o era em 1907, data da famosa encíclica; é o espírito perpétuo da Revolução, que nos quer fechar na nossa humanidade e colocar Deus fora da lei. Sua falsa definição não busca senão corromper a autoridade de Deus e a da Igreja.
A fé nos vem do exterior, nós estamos obrigados a nos submeter a ela. “Quem crer será salvo, quem não crer será condenado”, é Nosso Senhor que o afirma.
Quando eu fui ver o papa em 1976, ele, para minha imensa surpresa, me reprovou o fato de fazer meus seminaristas prestarem um juramento contra ele. Tive dificuldade de compreender donde isto poderia provir, pois alguém com toda a evidência lhe havia insuflado esta idéia, na intenção de prejudicar-me. Depois se fez a luz no meu espírito: tinha-se interpretado neste sentido o juramento antimodernista que até agora todo o sacerdote era obrigado a recitar solenemente antes de sua ordenação e todo o dignitário eclesiástico no momento de receber seu cargo. S.S. Paulo VI o havia ele mesmo prestado mais de uma vez na sua vida. Ora, eis aqui o que se encontra neste juramento:
“Eu tenho como certíssimo e professo sinceramente que a fé não é um sentimento religioso cego, que emerge das trevas do subconsciente sob a pressão do coração e a inclinação da vontade moralmente informada! Mas que ela é um verdadeiro assentimento da inteligência à verdade recebida de fora, pela qual nós cremos ser verdadeiro, devido à autoridade de Deus, tudo o que foi dito, atestado e revelado pela pessoa de Deus, nosso criador e soberano.”
O juramento antimodernista não é mais exigido para alguém se tornar padre ou bispo; se o fosse, haveria ainda menos ordenações que há. Com efeito, o conceito de fé foi falseado, e muitas pessoas, sem terem más intenções, se deixam influenciar pelo modernismo. É porque elas aceitam crer que todas as religiões salvam, se cada um tem uma fé segundo sua consciência, se é a consciência que produz a fé, não há razão de pensar que uma fé salva melhor que outra, contanto que a consciência seja orientada para Deus. Lêem-se afirmações como esta num documento proveniente da comissão de catequese do episcopado francês: “A verdade não é qualquer coisa de recebido, de inteiramente feito, mas alguma coisa que se faz.”
A diferença de ótica é total. Diz-se-nos que o homem não recebe a verdade, mas a constrói. Ora nós sabemos e nossa própria inteligência no-lo confirma que a verdade não se cria, não somos nós que a criamos. Mas como defender-se contra estas doutrinas perversas que arruínam a religião, visto que estes “dizedores de novidades” se encontram no próprio seio da Igreja? Eles foram, graças a Deus, desmascarados desde o início do século dum modo que permite reconhecê-los facilmente. Não pensemos que se trata de um fenômeno antigo que interessa apenas aos escritores eclesiásticos: a Pascendi é um texto que se acreditaria escrito hoje, é duma atualidade extraordinária e pinta, com cores tão frescas que não se poderia admirá-la demasiadamente, estes inimigos do interior.
Ei-los “curtos em filosofia e em teologia sérias, se apresentando, com desprezo de toda modéstia, como renovadores da Igreja... desprezadores de toda a autoridade, indóceis a todo o freio.” “Sua tática é jamais expor suas doutrinas metodicamente e no seu conjunto, mas de fragmentá-las de alguma sorte, de espalhá-las aqui e ali, o que faz julgá-los ondulantes e indecisos, quando suas idéias, ao contrário, são perfeitamente determinadas e consistentes... Tal página de sua obra poderia ser subscrita por um católico; virai a página e vós credes estar lendo um racionalista... Censurados e condenados, eles seguem o seu caminho dissimulando sob aparências enganadoras de submissão uma audácia sem limites... Quem quer que tem a desgraça de criticar uma ou outra de suas novidades, por monstruosa que seja, eles caem sobre ele em fileiras cerradas, quem a nega é tratado de ignorante, quem a abraça e a defende é elevado às nuvens... Uma obra aparece, respirando a novidade por todos os seus poros, eles a acolhem com aplausos e gritos de admiração. Quanto mais um autor levar sua audácia a difamar a antiguidade, a minar a Tradição e o magistério eclesiásticos tanto mais será sábio. Enfim, se acontece que um dentre eles é golpeado pelas condenações da Igreja, bem depressa os outros vão cerrar fileiras à sua volta, cumulá-lo de elogios e venerá-lo quase como um mártir da verdade.”
Todos estes traços correspondem tão bem ao que vemos, que se acreditariam esboçados bem recentemente. Em 1980, após a condenação de Hans Küng, um grupo de cristãos procedia, diante da catedral de Colônia, a um auto de fé à guisa de protesto contra a decisão da Santa Sé de retirar do teólogo suíço sua missão canônica; tinha-se feito uma fogueira sobre a qual eles jogaram um manequim e obras de Hans Küng “afim de simbolizar a interdição dum pensamento corajoso e honesto” (Le Monde). Pouco antes, as sanções contra o P. Pohier haviam provocado outros levantamentos de escudos: 300 dominicanos e dominicanas endereçaram uma carta pública de protesto contra estas sanções, uma vintena de personalidades assinavam um outro texto; a abadia de Boquen, a capela de Montparnasse e outros grupos de vanguarda vinham em ajuda. A única novidade em relação à descrição de São Pio X é que eles não se dissimulam mais sob aparências enganosas de submissão; tomaram confiança, têm muitos apoios na Igreja para esconder-se ainda. O modernismo não está morto, ao contrário, progrediu e se ostenta.
Continuemos a ler a Pascendi: “Depois disto, não há motivo de se admirar se os modernistas perseguem com toda a sua malevolência, com toda a sua acrimônia, os católicos que lutam vigorosamente pela Igreja. Não há sorte de injúrias que os modernistas não vomitem contra eles. Se se trata dum adversário cuja erudição e vigor de espírito o tornam temível: os modernistas buscarão reduzi-lo à impotência organizando em torno dele a conspiração do silêncio”. É o caso hoje dos padres tradicionalistas acossados, perseguidos, dos escritores religiosos ou leigos de quem a imprensa nas mãos dos progressistas jamais diz uma palavra. Movimentos de juventude são também postos de lado porque permanecem fiéis e cujas atividades edificantes, peregrinações ou outras, ficam desconhecidas do público que no entanto poderia encontrar nisto um reconforto.
“Se eles escrevem história, procuram com curiosidade e publicam aos quatro ventos, sob o pretexto de dizer toda a verdade e com uma sorte de prazer mal dissimulado, tudo que lhes parece macula na história da Igreja. Dominados por certos preconceitos, destroem, tanto como podem, as piedosas tradições populares. Põem em ridículo certas relíquias muito veneráveis por sua antiguidade. Eles são enfim possuídos pelo vão desejo de fazer falar deles; o que não sucederia, eles bem o compreendem, se dissessem como se tem sempre dito até aqui.”
Quanto à sua doutrina, ela repousa sobre alguns pontos seguintes, que não se terá dificuldade em reconhecer nas correntes atuais: ”A razão humana não é capaz de elevar-se até Deus, não, nem mesmo para conhecer, por meio das criaturas a sua existência.” Sendo impossível toda revelação exterior, o homem buscará em si mesmo a satisfação da necessidade do divino que sente e cujas raízes, se encontram no seu subconsciente. Esta necessidade do divino suscita na alma um sentimento particular ”que une de algum modo homem com Deus.“ Tal é a fé para os modernistas. Deus é assim criado na alma e é a revelação.
Do sentimento religioso se passa ao domínio da inteligência que vai elaborar o dogma: o homem deve pensar sua fé, é uma necessidade para ele, uma vez que é dotado de inteligência. Ele cria fórmulas que não contêm a verdade absoluta mas imagens da verdade, símbolos. Estas fórmulas dogmáticas estão, por conseguinte, submetidas à mudança, elas evoluem. “Assim está aberto o caminho à variação substancial dos dogmas.”
As fórmulas não são simples especulações teológicas, elas devem ser vivas para serem verdadeiramente religiosas. O sentimento deve assimilá-las ”vitalmente”.
 Fala-se hoje da “vivência da fé”. “Afim de que elas sejam e permaneçam vivas, continua Pio X, estas fórmulas devem ficar ajustadas ao crente e à sua fé. No dia em que esta adaptação viesse a cessar, então elas se esvaziariam ao mesmo tempo de seu conteúdo primitivo; não haveria outro partido a tomar senão mudá-las dado o caráter tão precário e tão instável das fórmulas dogmáticas, compreende-se muitíssimo bem que os modernistas as tenham em tão pouca estima se é que não as desprezam abertamente. O sentimento religioso, a vida religiosa é o que eles têm sempre nos lábios”. Nas homilias, nas conferências, nos catecismos, dá-se caça às “fórmulas preparadas.”
O crente faz sua experiência pessoal da fé, depois ele a comunica a outros pela pregação, é assim que a experiência religiosa se propaga. “Quando a fé se tornou comum ou, como se diz, coletiva” experimenta-se a necessidade de se organizar em sociedade para conservar e fazer crescer o tesouro comum. Donde a fundação duma Igreja. A Igreja é “o fruto da consciência coletiva, falando de outra maneira, da coleção das consciências individuais: consciências que derivam dum primeiro crente - para católicos, de Jesus Cristo”.
E a história da Igreja se escreve como segue: no início, quando se acreditava ainda que a autoridade da Igreja vinha de Deus, era concebida como autocrática. “Mas hoje se voltou atrás a esse respeito. Assim como a Igreja é uma emanação vital da consciência coletiva, de igual modo, por seu lado, a autoridade é um produto vital da Igreja.” Então é preciso que o poder mude de mãos e venha da base. A consciência política criou o regime popular, deve acontecer o mesmo na Igreja: “Se a autoridade eclesiástica não quer, no mais íntimo das consciências, provocar e fomentar um conflito, cabe a ela ceder às formas democráticas.”
Vós compreendeis agora, católicos perplexos, aonde o cardeal Suenens e todos os teólogos turbulentos foram buscar suas idéias. A crise pós-conciliar está em perfeita continuidade com aquela que agitou o fim do último século e o início deste. Compreendeis assim porque, nos livros de catecismo que vossos filhos trazem para a casa, tudo começa nas primeiras comunidades, que se formaram depois de Pentecostes, quando os discípulos sentiram a necessidade do divino, devido ao choque provocado por Jesus e viveram em conjunto “uma experiência original”. Vós podeis explicar-vos a ausência dos dogmas, a Santíssima Trindade, a Encarnação, a Redenção, a Assunção etc., nestes mesmos livros e nos sermões. O texto de referência elaborado para a catequese pelo episcopado francês se estende sobre a criação de grupos que serão “mini-Igrejas” destinadas a recompor a Igreja de amanhã segundo o processo que os modernistas creram ler no nascimento da Igreja dos Apóstolos: “Num grupo de catequese, animadores, pais e crianças trazem sua experiência de vida, suas aspirações profundas, imagens religiosas, um certo conhecimento das coisas da fé. Segue-se uma confrontação que é condição de verdade, na medida em que ela põe em movimento os desejos profundos das pessoas e as compromete realmente em direção das transformações inevitáveis que todo o contato com o Evangelho manifesta. Bloqueios são possíveis. É no final duma ruptura, duma conversão, duma espécie de morte que se pode, pela graça, efetuar a confissão de fé.”
São os bispos que põem em aplicação às claras a tática modernista condenada por são Pio X! Tudo se encontra neste parágrafo1 relede-o com atenção. O sentimento religioso provocado pela necessidade, as aspirações profundas, a verdade originando-se na confrontação das experiências, a variação dos dogmas, a ruptura com a Tradição.
Para o modernismo os sacramentos nascem também duma necessidade “pois, como se notou, a necessidade, a exigência, tal é, em seu sistema, a grande e universal explicação”. É preciso dar à religião um corpo sensível. “Os sacramentos são (para eles) puros sinais ou símbolos, embora dotados de eficácia. Eles os comparam a certas palavras das quais se diz vulgarmente que elas têm sucesso, porque possuem a virtude de irradiar idéias fortes e penetrantes que impressionam e comovem. Bem se pode dizer: os sacramentos não foram instituídos senão para nutrir a fé: proposição condenada pelo concílio de Trento.”
Esta idéia se reencontra em Besret, por exemplo, que foi “perito” no concílio: “Não é o sacramento que põe o amor de Deus no mundo. O amor de Deus trabalha em todos os homens. O sacramento é o momento de sua manifestação pública na comunidade dos discípulos... Dizendo isto, não tenciono absolutamente negar o aspecto eficaz dos sinais formulados. O homem se realiza também ao revelar-se e isto vale nos sacramentos como no resto de sua atividade2.
Os Livros Santos? Eles são para os modernistas “a compilação das experiências feitas numa determinada religião”. É Deus que fala através destes livros, mas o Deus que está em nós. São livros inspirados um pouco como se fala de inspiração poética; a inspiração é assimilada à necessidade intensa que experimenta o crente de comunicar sua fé por escrito. A Bíblia é uma obra humana.
Em Pedras Vivas, se diz às crianças que o Gênesis é um “poema” escrito um dia pelos crentes que “refletiram”. Esta compilação, imposta pelos bispos da França a todos os alunos do catecismo, respira modernismo em quase todas as páginas. Estabeleçamos um pequeno paralelo: São Pio X: ”É uma lei (para os modernistas) que a data dos documentos não poderia ser determinada de outra maneira senão pela data das necessidades às quais a Igreja está sujeita sucessivamente.”
Pedras Vivas: ”Para ajudar estas comunidades a viver o Evangelho, alguns Apóstolos lhes escrevem cartas que se chamam também Epístolas... Mas os Apóstolos contaram sobretudo de viva voz o que Jesus tinha feito no meio deles e o que lhes havia dito... Mais tarde quatro autores — Marcos, Mateus, Lucas e João — escreveram o que os Apóstolos disseram.”, “Redação dos Evangelhos: Marcos por volta de 70? Lucas entre 80-90? Mateus entre 80-90? João entre 95-100?”, “Eles narraram os acontecimentos da vida de Jesus, suas palavras e sobretudo sua morte e sua ressurreição para esclarecer a fé dos crentes.”
São Pio X: “Nos Livros Sagrados (dizem) há vários lugares, relativamente à ciência ou à história onde se verificam erros manifestos. Mas não é de história nem de ciência que estes livros tratam, é unicamente de religião e de moral.”
Pedras Vivas: “É um poema (o Gênesis) e não um livro de ciência. A ciência nos diz que foram precisos milhões de anos para ver aparecer a vida.” “Os Evangelhos não narram o relato da vida de Jesus como se refere hoje um acontecimento na rádio, na televisão ou num jornal.”
São Pio X: Eles não hesitam em afirmar que os livros em questão, sobretudo o Pentateuco e os três primeiros Evangelhos, se formaram lentamente de anexos feitos a uma narração primitiva muito breve: interpolações à maneira de interpretações teológicas ou alegóricas, ou simplesmente transições e suturas.”
Pedras Vivas: “O que se escreveu na maior parte destes livros tinha sido inicialmente narrado de pai para filho. Um dia alguém o escreveu para transmiti-lo a seu turno e frequentemente o que escreveu, foi reescrito por outras pessoas ainda... 538, dominação dos Persas: a reflexão e as tradições tornam-se livros. Esdras, por volta de 400, reúne (diversos livros) para fazer deles a Lei ou Pentateuco. Os rolos dos Profetas são compostos. A reflexão dos Sábios acaba em diversas obras primas.”
Os católicos que se espantam com a linguagem nova utilizada na “Igreja Conciliar” têm ademais a saber que ela não é tão nova, que Lammenais, Fuchs, Loisy já a empregavam no século passado e que eles mesmos não tinham senão amontoado todos os erros que puderam ocorrer no decurso dos séculos. A religião de Cristo não mudou e não mudará jamais, não se deve deixar-se enganar.

  1. 1. Texto de referência, § 312.
  2. 2. De commencement em commencement, p. 176.