3 . CATARINA IMPLORA A MISERICÓRDIA DIVINA

3 . CATARINA IMPLORA A MISERICÓRDIA DIVINA


3.1 - Angústias e esperanças de Catarina

   Então aquela serva sentiu-se cheia de ardor e inflamada de grandíssimo desejo. Experimentava interiormente inefável amor pela imensa bondade divina, ao tomar conhecimento e ver a extensão de seu amor. Como grande amabilidade, Deus se dignara de responder a sua petição; dignara-se também a mitigar a amargura que a serva sentia ante as ofensas cometidas contra ele, ante os prejuízos sofridos pela santa Igreja, ante a própria miséria. Deus lhe infundira esperança. O autoconhecimento fazia a sua amargura, ao mesmo tempo, diminuir e aumentar, pois o Pai eterno, após ter lhe mostrado o caminho da perfeição (2.3), havia revelado quanto era ofendido e qual o dano que os homens recebiam. Destas coisas, porém, falarei mais largamente em seguida (4.1ss).
   No autoconhecimento o homem conhece melhor a Deus. Ao contemplar a bondade divina em si e no espelho da divindade, ele compreende que tem em si uma dignidade e uma indignidade. Dignidade por reconhecer-se imagem divina por dom gratuito da criação; indignidade por ver no espelho da divindade o pecado humano. Quem se olha num espelho vê as manchas do próprio rosto;  o mesmo acontece com a pessoa que, com amor e fé, se comtempla em Deus. A pureza divina mostra-lhe melhor os defeitos da própria face.
    Mas iluminada e esclarecida, aquela serva sentia que sua angústia aumentava e ao mesmo tempo diminuía. Diminuía pela esperança que a Verdade eterna lhe dera; mas, da mesma forma como cresce uma chama ao receber matéria combustível, assim ergueu-se o ardor daquela serva, chegou ao clímax. O corpo humano parecia não resistir e morrer. Não fosse a força da proteção divina, certamente não conseguiria mais viver. A chama do amor divino purificou-lhe a alma e a serva foi introduzida no conhecimento de si e de Deus. Cresceu o ardor, na esperança de salvar o mundo inteiro, de reformar a santa Igreja. O Pai eterno lhe fizera ver a lepra da santa Igreja e a miséria do mundo. Com segurança colocou-se diante dele e falando como Moisés, disse:

3.2 - Súplica à Trindade

   Meu Senhor, olha com misericórdia para o teu povo e para a hierarquia da santa Igreja. Se perdoares a tão numerosas criaturas, concedendo-lhes a iluminação da inteligência, serás mais glorificado que só por mim, pobrezinha que tanto pequei, responsável por todos os males. Livres das trevas do pecado mortal e da condenação eterna por tua infinita bondade, todos te louvariam. Por essa razão eu te suplico, caridade divina e eterna, que te vingues sobre mim. Tem piedade do teu povo! Não me afastarei de tua presença enquanto não perceber que usaste de misericórdia para com o teu povo. Que prazer teria eu em ganhar a vida eterna, se teu povo estivesse na morte e se a escuridão aumentasse na tua Esposa - que é toda luz - por causa dos meus pecados e dos pecados dos demais? Eu quero, portanto, e imploro tal graça; que tenhas piedade do teu povo, pela caridade incriada que te levou a criar o homem à tua imagem e semelhança, quando disseste: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gn 1,26).
   Ó sublime e eterna Trindade, agiste assim a fim de que a humanidade participasse do teu ser: deste-lhe a memória, Pai eterno, para que se recordasse do teu benefício, possuindo algo do teu poder; deste-lhe a inteligência com que conhecesse tua bondade e tivesse parte na sabedoria do Filho; deste-lhe vontade para amar tudo quanto a inteligência compreendesse da tua Verdade, e com isso participasse da clemência do Espírito Santo.
   Qual foi a razão que te levou a colocar o homem em tão sublime dignidade? Certamente o incompreensível amor, com que o pensaste e dele te enamoraste! Por amor criaste o homem e lhe deste o ser, desejoso de que saboreasse o teu sumo e eterno Bem. Como o compreendo! Pelo pecado o homem perdeu a dignidade em que o colocaras; rebelou-se, entrou em guerra com tua clemência. Tornamo-nos inimigos teus. Tu, movido pelo mesmo fogo criador, providenciaste o modo de reconciliar a humanidade decaída durante a guerra. A fim de transformar essa guerra em grande paz, deste-nos o Verbo, teu Filho, como Mediador. Ele tornou-se nossa justiça (1Cor 1,30). Tomou sobre si mesmo nossas maldades, realizou o que tu, Pai eterno, lhe impuseras por obediência. Tudo a partir do momento em que o revestiste de nossa natureza, pois ele a assumiu.
   Ó abismo de amor! Que coração não explodiria ao ver o Altíssimo descer até a pequenez da nossa humanidade! Somos tua imagem, és a nossa imagem pela união feita no homem, quando a divindade se velou sob a miserável nuvem e corrompida matéria de Adão! Tudo por amor! Sendo Deus, te fizeste homem, e o homem se fez Deus! Pois bem, por esse amor inexprimível eu te obrigo e imploro: usa de misericórdia para com tuas criaturas!